Que família não tem o seu negacionista do coronavírus? Aquele parente que acha que a covid-19 é só “uma gripe”, que máscaras não funcionam, que a quarentena é bobagem? Ou até mesmo que o número de mortes é falso, exagerado, inventado para “assustar a população”? Ou ainda que algumas das vacinas em desenvolvimento fazem parte de um plano do governo chinês para “eliminar” parte da população?
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Pois bem, minha família não é diferente: temos (pelo menos) um negacionista, que, desde abril ou maio, passou a me encaminhar todas as fake news sobre a pandemia (pelo WhatsApp, claro; por onde mais?) – com o objetivo de “me provar” que tudo o que está sendo veiculado “na grande mídia” é mentira. De propósito, claro, especificamente porque eu sou jornalista. Sou parte desses supostos divulgadores de desinformação, que só querem assustar a população, ou então estão ingenuamente sendo enganados por aquela vaga e onipotente entidade chamada “eles”: “ah, eles não querem que a gente saiba a verdade.”
E veja bem: eu sequer trabalho diretamente em editorias ligadas à saúde ou política. Estou em home office desde março: não precisei ir para a rua encarar a pandemia de frente e confrontar a descrença vinda de fontes e pública. Incomoda saber que alguém da minha própria família tem tamanha desconfiança em relação ao meu trabalho, é claro – mas o dia a dia dos jornalistas que estão na rua cobrindo a pandemia e questionando autoridades políticas a respeito, eu só posso imaginar.
Para não ficarmos só na imaginação, o diretor Caio Cavechini decidiu registrar em documentário como tem sido o trabalho dos jornalistas de diversos veículos de comunicação brasileiros desde meados de abril: o resultado é Cercados – A Imprensa Contra o Negacionismo na Pandemia, que estreou no Globoplay no dia 3 de dezembro. O filme, um documentário jornalístico focado no próprio jornalismo, mostra o desenrolar da pandemia de coronavírus de um ângulo inédito.
– A ideia, trabalhada entre o Globoplay e o jornalismo da Globo, de fazer um documentário que retratasse de forma ampla e profunda o trabalho da imprensa brasileira, surgiu em abril – explica Cavechini, em entrevista ao DC. – Essa decisão foi tomada na época da crise com o então ministro [Luiz Henrique] Mandetta, e logo formamos uma equipe com colaboradores em diversas cidades, respeitando todos os protocolos de segurança. A demissão do Mandetta é o único momento em que usamos arquivos para recuperar a história: a partir daí, já estávamos vivenciando e gravando em tempo real.
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Embora a pandemia de coronavírus seja o gatilho que disparou Cercados, o filme, inevitavelmente, aborda também as crises políticas desencadeadas ou agravadas por ela:
– Nosso foco prioritário sempre foi a pandemia, mas a crise política interferia em uma resposta unida de todas as instituições contra o vírus – diz o diretor. – Os assuntos se misturam porque fluem naturalmente na cronologia. Os momentos mais marcantes foram as primeiras semanas de maio, em que as duas crises – a sanitária e a política – atingiram o auge. Ao mesmo tempo em que os brasileiros ouviam notícias sobre possíveis interferências na Polícia Federal, mais um Ministro da Saúde pediu demissão; isso tudo enquanto o número de vítimas e contaminados não parava de crescer.
– Em um jornal, os assuntos são separados por manchetes, por blocos – ele compara. – No documentário, não tínhamos esses códigos de divisão de assuntos, então foi um desafio fazer os temas fluírem com a tensão do momento, mas sem confundirem o espectador.
O título do documentário, aliás, remete mais à política do que ao coronavírus em si: o nome faz referência ao “cercadinho”, como é conhecido o espaço destinado aos profissionais da imprensa na portaria do Palácio da Alvorada, residência oficial da Presidência.
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Embora Cercados conte com depoimentos de diretores e editores-executivos de grandes jornais do país, Cavechini quis evitar fazer um documentário de entrevistas.
– Optamos por fazer um filme de imersão, gravando diariamente as situações vividas por dezenas de jornalistas, dos mais variados veículos do país – conta o diretor. – Buscamos acessos aos bastidores do trabalho em redações como a do Jornal Nacional, no Rio, mas também a rotina de fotógrafos freelancers, repórteres de política, videomakers.
– Manaus e Fortaleza apresentavam um quadro grave logo no começo da pandemia. Brasília era o centro político em crise diária. São Paulo sofria com hospitais lotados e recordes de vítimas em números absolutos – ele enumera, comparando as diferentes situações e destaques em algumas cidades brasileiras. – Em cada uma dessas cinco cidades, acompanhamos o trabalho de alguns jornalistas, mais de sessenta profissionais ao todo.
Feita a muitas mãos, a produção de Cercados registrou diversos momentos marcantes.
– João Rocha registrou no Rio momentos muito particulares dos bastidores do Jornal Nacional: a reação da redação após um ataque direto do presidente, uma pane com o telejornal no ar, discussões muito espontâneas da equipe – lista Cavechini. – Em São Paulo, a repórter Danielle Zampollo teve acesso a gravações fortíssimas dos médicos, como o momento em que uma delas abandona o plantão ou quando outro consola uma viúva. Eu entrei com Caue Angeli na redação do Estado de S. Paulo vazia, e foi um choque: para nós e para o editor que estávamos acompanhando, que não voltava há tempos ali. A câmera registrou essa reação. O documentário precisa se lançar no real e estar atento para o que acontece.
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Recentemente, Caio Cavechini dirigiu outra série documental, também disponível no Globoplay, esta sobre Marielle Franco. O diretor se mostra entusiasmado diante das possibilidades oferecidas pelas plataformas de streaming:
– É um universo extremamente promissor, principalmente para alguém que, como eu, se dedica integralmente ao documentário – considera. – Existe uma nova oferta para o público e investimento para os realizadores. Novos documentários podem atrair novos públicos para esse formato, estimulando a reflexão e o debate.
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Para encerrar, pergunto por que um certo obscurantismo parece estar tomando conta da opinião pública nos últimos anos – afinal, o negacionismo quanto ao coronavírus não é o único exemplo: movimentos antivacina têm ganhado força, assim como teorias que vão da conspiração a respeito de governos e empresas a afirmações de que a Terra, na verdade, é plana.
– É difícil dizer. O jornalismo e a ciência, como formas de conhecimento da realidade, enfrentaram um duplo desafio: lidar com o negacionismo e ajudar as pessoas a se cuidar e as instituições a tomar decisões que protejam o maior número de cidadãos – Caio Cavechini aponta. – O jornalismo foi muito atacado, como a ciência também foi, desde o início da pandemia.
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– O documentário, ao escolher retratar a rotina dos veículos brasileiros na pandemia, é também um registro histórico do tamanho desse desafio – encerra o diretor. – Depois de um mês de gravação, ficou claro que estávamos diante de um caso muito particular no mundo, com a imprensa atacada e o negacionismo sendo estimulado por autoridades públicas. Essa tensão se tornou naturalmente o fio condutor do documentário.
Cercados – A Imprensa Contra o Negacionismo na Pandemia está disponível no Globoplay. Agora é esperar que quem assistir não descarte tudo como sendo fake news. Ou pura invencionice “deles.”