Apaixonada por fotografia desde que ganhou uma Kodak Instamatic do pai, aos nove anos, a gaúcha Alice Martins preparava-se na semana passada para cruzar a fronteira entre Turquia e Síria com destino a Aleppo, cidade controlada pela oposição armada ao regime de Damasco.
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A eclosão de um movimento multitudinário de protesto contra o governo do primeiro-ministro turco Recep Tayyip Erdogan, porém, fez a fotógrafa freelance de 32 anos, natural de Rio Grande, mudar de planos. Na segunda-feira, ela escreveu em seu perfil no Facebook: “A caminho de Istambul. Dando uma respirada sem gás antes de o avião pousar”. Era uma referência às nuvens de gás lacrimogêneo usadas pelas forças policiais contra os manifestantes.
Por telefone, de Istambul, Alice disse a Zero Hora que havia detectado sinais de instabilidade no país desde que dois carros-bomba explodiram na cidade de Reyhanli, perto da fronteira com a Síria, num atentado pelo qual o governo turco responsabilizou o regime sírio. Quarenta e seis pessoas morreram, em sua maioria turcos, mas também refugiados sírios.
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– Fui hoje à Praça Taksim. É um lugar muito grande e estava superlotado. Nunca vi nada parecido no Brasil. Eram pessoas de partidos diferentes, de religiões diferentes, de ideologias diferentes, todas unidas contra o governo – afirmou a brasileira.
Segundo Alice, parte dos ativistas que está nas praças atribui a força do movimento ao uso de redes sociais como Facebook e Twitter:
– O governo controla a mídia. Os donos da maioria dos jornais e emissoras de TV defendem o primeiro-ministro. O protesto que começou na semana passada contra o corte de árvores no Parque Gezi se tornou maior em razão da violência da polícia. E, nos três primeiros dias, a mídia simplesmente não mostrou o que estava acontecendo.
A Turquia, segundo a brasileira, é um país polarizado entre simpatizantes e opositores do governo. A oposição, afirma Alice, está concentrada nas grandes cidades, como Istambul (13 milhões de habitantes), a capital, Ancara (4,3 milhões), e a pequena província fronteiriça de Hatay (onde se situa Reyhanli), com uma forte presença de alauítas, ramo islâmico também presente na Síria.
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– Nas pequenas cidades, a maioria da população é sunita, mais religiosa e conservadora. As mulheres usam véu islâmico. O apoio ao governo é maior – exemplifica.
Apesar da convulsão na Turquia, Alice não pretende permanecer em Istambul por mais de dois a três dias. Seu projeto é retomar o trabalho que vem fazendo de forma sistemática desde julho do ano passado como repórter fotográfica na Síria:
– Sinto que é uma história muito importante, e há poucos jornalistas. Quanto menos interesse percebo, maior é minha vontade de contá-la.
Alice conhece os riscos de atuar como jornalista no país. Um dos primeiros profissionais com quem travou contato ao chegar na Turquia, James Foley, foi sequestrado no final do ano passado na Síria e está desaparecido.
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Polícia usa gás “made in Brazil”
Parte do gás lacrimogêneo que tem provocado protestos na Turquia por ser utilizado como forma de dispersar os protestos contra o governo traz, no verso da lata que o reveste, o selo “Made in Brazil”.
Boa parte dos equipamentos de “tecnologia não letal” utilizados pelas forças de segurança de Recep Erdogan procede da empresa brasileira Condor – Tecnologias Não Letais, do Rio de Janeiro.
Em resposta a um questionário enviado por e-mail por Zero Hora, a empresa responde que não vende seus produtos com exclusividade: “No caso da Turquia, o país adquire tecnologias não letais de diversos fornecedores, e a própria mídia revelou produtos americanos e coreanos sendo usados naquele país”.
O gás lacrimogêneo vendido pela Condor é do tipo GL-310, conhecido também como “granada lacrimogênea bailarina” por se movimentar no solo, atingindo uma área extensa.
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A empresa se recusa a responder algumas perguntas, como números de suas vendas para a Turquia, alegando que “está impedida de revelar dados dos contratos com clientes, em função de cláusulas de confidencialidade previstas nos mesmos”. Sendo assim, “só o cliente pode revelar estas informações”.
Questionada se leva em conta o fato de o país comprador ser uma democracia, a Condor explica os efeitos do produto que está sendo utilizado na Turquia: “As tecnologias não letais são projetadas especificamente para incapacitar temporariamente as pessoas, sem causar-lhes danos irreparáveis ou morte.” E completa dizendo que “os compradores são treinados e orientados a usar corretamente o equipamento.
ZH perguntou o que ocorre se o comprador utiliza o produto indevidamente. A Condor, que vende sua tecnologia para “mais de 40 países”, diz que correções de rota são rotineiras. “Os produtos fabricados pela Condor devem ser utilizados apenas e tão somente na forma indicada em seus manuais de instruções e fichas técnicas. É imperativo que sejam operados por pessoas treinadas e qualificadas. Sempre que existem relatos de uso indevido dos materiais, entramos em contato com os clientes para tentar entender se houve realmente mau uso e oferecemos novos treinamentos, quando necessário. Isso é feito de maneira rotineira”, explica a empresa.
No caso turco, a empresa monitora o uso dos seus produtos “por meio do noticiário, diário, dos diversos veículos de comunicação”. Diz que está “sempre atenta aos acontecimentos no mundo, em especial no que se refere à área de defesa e segurança”.
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Internamente, a Condor fornece “tecnologia não letal” para “as forças de defesa e segurança do país: Exército Brasileiro, Marinha, Polícias Militares, Guardas Municipais, Polícias Civis, etc”.