Em três dias do feriadão de Natal, os moradores da cidade de Erie, na Pensilvânia, tiveram que lidar com um metro e meio de neve acumulada nas calçadas. Comércios fecharam, veículos foram abandonados nas ruas e a população resignou-se a ficar em casa. No mês inteiro, nevou o dobro da média. O episódio retrata o rigoroso inverno que os Estados Unidos enfrentaram nessa temporada, pano de fundo ideal para a mais grave epidemia de gripe desde 2009 no país. Mais de 48,3 mil pessoas adoeceram e 142 crianças morreram desde outubro, segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês). A epidemia lá fora acende o alerta por aqui: agora, com a gradual queda de temperatura no Sul do Brasil, a doença entra em nosso radar. Infectologistas afirmam,em consenso, que o surto nos EUA, culpa do vírus A H3N2, não necessariamente é preâmbulo para uma situação complicada no Brasil. A vacina é a principal carta do baralho.

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— A gente nunca tem como prever o tamanho do problema. Tivemos uma experiência muito intensa em 2009 e, agora, temos mais conhecimento. Mas não devemos ter uma epidemia como a dos Estados Unidos — aponta Marilina Bercini, especialista em saúde.

As internações recentes por H1N1 no Brasil (32 em Goiás, com duas mortes) e de H3N2 (42 no Estado de São Paulo, com duas mortes no município de Taubaté) são vistas como algo normal pelas autoridades O fantasma do H1N1 agora já não causa mais tanto medo. Em 2010, um ano depois do surto do vírus, a OMS o rebaixou para “ sazonal” – na prática, um vírus da gripe comum, assim como outros.

— O H1N1 não é mais aquilo que foi em 2009, quando as pessoas não tinham anticorpos e houve muitas internações e óbitos. Desde 2010, a vacina protege contra esse vírus — acrescenta Bercini.

O fato é que é difícil antever se haverá ou não uma epidemia neste inverno. Essa, aliás, é uma dúvida que ressurge todos os anos. Segundo a Organização Mundial da Saúde ( OMS), devem circular por aqui os vírus A H1N1, A H3N2 e B – os grandes responsáveis pela gripe de inverno, mas que podem ser evitados com a vacina oferecida de forma gratuita pela rede pública de saúde. A grande dor de cabeça é o subtipo A, que é bastante instável e pode sofrer mutação em alguns meses a ponto de driblar a vacina e nosso sistema imunológico – foi o que ocorreu em 2009, com a gripe suína. Mas prever um quadro semelhante é praticamente impossível.

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Por que é importante se vacinar todos os anos

Quem define a composição da vacina no mundo todo é a OMS. Em comunicado anual, a entidade informa os vírus com maior chance de circular no Hemisfério Sul e no Norte após analisar amostras enviadas por centros espalhados em 114 países. A diretriz é seguida por laboratórios para nortear a produção de vacinas. As doses são usadas para combater um cenário cruel: todo ano, diz a entidade, a gripe mata entre 290 mil e 650 mil pessoas no mundo.

A receita da vacina chega aos laboratórios cerca de nove meses antes da época em que a gripe prevalece – um intervalo de tempo grande, mas necessário para a produção. A fabricação é complicada, são meses para chegar aos pedacinhos de vírus morto que se tornarão a dose a circular na corrente sanguínea das pessoas. No Hemisfério Sul, por exemplo, a composição é definida pela OMS em setembro para que as doses fiquem prontas até o início de abril.

—A vacina ensina o corpo a se proteger, como se o sistema imunológico escrevesse um livro sobre o vírus e o deixasse na biblioteca. Quando o influenza realmente entra no organismo, o sistema imunológico vai à biblioteca, pega o livro e produz o anticorpo com a receita que aprendeu — explica o infectologista Paulo Ernest Gewehr Filho.

Não existe uma vacina universal, como a da febre amarela, tomada apenas uma vez na vida. No caso da gripe, há dois problemas: a imunização dura de seis a 12 meses, e o vírus, em especial o influenza A, sofre mutações genéticas em questão de meses. Ele pega um pouco do material genético de seu hospedeiro e o mistura ao material genético do ser vivo que o recebe logo depois.

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Vírus se modifica e exige cuidados

Na prática, o vírus muda enquanto pula de galho em galho, o que exige a atualização da vacina.

— O vírus influenza A é muito instável. Por isso, se recomenda que as pessoas se vacinem. A efetividade pode variar, mas é melhor do que não se vacinar – diz o epidemiologista José Cássio de Moraes, doutor em saúde pública pela Universidade de São Paulo (USP).

Pandemias caóticas só ocorrem se o vírus muda muito e de forma rápida. Aí, nem os anticorpos naturais nem a imunização surtem efeito. Mas isso é uma exceção, vale lembrar.

A vacina é um dos grandes marcos da medicina moderna. Surgiu no início do século 18, quando o médico britânico Edward Jenner observou que mulheres que ordenhavam vacas com um tipo de varíola eram imunes à variação da doença que atingia humanos. A invenção erradicou a varíola, assim como a poliomielite.

—A vacina não protege contra todos os vírus da gripe, mas protege contra as formas mais graves da doença – destaca o infectologista Eduardo Sprinz, professor de faculdade de Medicina.

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A proteção surge entre 10 e 30 dias após a aplicação. É por isso que a campanha nacional de vacinação ocorre em abril, mês que antecede o inverno. Neste ano, a mobilização foi postergada devido a um atraso na chegada das doses e ocorrerá entre 23 de abril e 1º de junho. Quem está de fora dos grupos prioritários pode recorrer a clínicas particulares. Ainda sobre a vacina, nos últimos dias houve relatos de pais que não puderam imunizar crianças entre seis meses e três anos em clínicas particulares. O motivo é que, nas bulas de vacinas produzidas por um laboratório, a indicação era de vacinas para crianças a partir de três anos.

—A bula que vale é a do site da Anvisa. As crianças entre seis meses e três anos podem se vacinar — diz Isabella Ballalai, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações ( SBIm).