O dia 31 de dezembro era para ser tranquilo na casa de Terezinha do Carmo Ávila Baccin, 63 anos, e Priscila de Avila Baccin, 36, no bairro Universitário, em Lages. Mas não foi o que aconteceu. As duas foram encontradas mortas por familiares durante a manhã.
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O acusado pelo crime foi o irmão e filho das vítimas, que foi denunciado pelo Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) por homicídio triplamente qualificado e já é reú no caso. Ele foi preso horas após os corpos serem encontrados, já na cidade de Palhoça, na Grande Florianópolis, a cerca de 200 km da cidade serrana.
Entre as qualificadoras na qual o homem, de 31 anos, foi denunciado pela promotoria está a do feminicídio, levando em conta o inciso I, que fala sobre o contexto de violência doméstica e familiar.
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Porém, ao analisar os dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP), mãe e filha não estão nas estatísticas catarinenses que contabilizam as mortes que englobam a qualificadora, mas sim no registro de homicídio. Uma divergência que, apesar de comum entre os poderes públicos, também pode trazer prejuízos à análise de políticas públicas voltadas para inibir a violência contra a mulher.
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O que é considerado feminicídio?
A qualificadora para o crime de homicídio foi incorporada ao Código Penal Brasileiro em 2015, após a aprovação da lei do feminicídio. Ela aumenta a pena dos assassinos se o crime é cometido contra a mulher “por razões da condição de sexo feminino”, envolvendo duas situações: violência doméstica e familiar e menospreso ou discriminação à condição de mulher.
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Inicialmente, a qualificadora pode gerar uma pena de 12 a 30 anos para o autor. Além disso, ela pode ser aumentada se o crime for praticado durante a gestação ou três meses após o parto; contra pessoa menor de 14 anos, maior de 60 ou com deficiência; e se for na presença de descendente ou de ascendente da vítima. A lei também classifica o feminicídio como um crime hediondo.
Feminicídios em Lages
Durante todo o ano de 2020, Santa Catarina registrou 57 feminicídios, segundo dados da SSP. Se o recorte levar em conta apenas Lages apenas um caso foi registrado no ano passado: o da jovem Ingrid Karine Corrêa da Silva, de 24 anos, morta pelo companheiro em março com um tiro no rosto.
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Já o caso de Terezinha e Priscila, entraram para as estatísticas da SSP como homicídio. Em 2020, foram registrados 8 casos em Lages.
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As informações sobre o “duplo feminicídio” do dia 31 de dezembro divergem se levar em consideração os primeiros registros. Nos boletins de ocorrência feitos pelas Polícias Militar e na Central de Polícia, os fatos entraram como feminicídio. Inclusive, nas informações enviadas à imprensa pela Polícia Militar, no dia 1º de janeiro, o crime também é descrito como duplo feminicídio.

A retirada da qualificadora, que foi o que fez que os casos não fossem contados pelas estatísticas, ocorreu durante a prisão e o indiciamento do suspeito, que ocorreu em Palhoça.
— Tanto a Central de Polícia quanto a Militar, em Lages, entenderam o caso como feminicídio. Mas, o delegado que fez o auto de prisão em flagrante em Palhoça entendeu que se tratava de um homicídio qualificado, por dificultar ou impossibilitar a defesa da vítima. Ele tem essa prerrogativa, se esse for o entendimento dele — explica o delegado regional de Lages, Fabiano Schimitt.
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Em nota, a SSP informou que o delegado resolveu indiciar o autor por homicídio e não feminicídio, devido às motivações apresentadas por ele durante o depoimento (confira a nota da secretaria ao fim da matéria).
Mas, ao receber o inquérito, o MPSC pediu novas investigações para a delegacia de Lages, que foram conduzidas pelo delegado da Divisão de Investigação Criminal (DIC), Raphael Barbosa, onde foram encontrados elementos que, para o entendimento da promotoria, comprovam que foi um feminicídio.
— Depois de apresentado, ele volta para Lages. Mas o caso ali é um feminicídio —, aponta Barbosa. O caso segue, agora, na Justiça onde o réu aguarda o julgamento.
Mas, é possível que um mesmo caso tenha interpretações diferentes por cada órgão público?
—Muitas vezes o delegado entende que não houve o feminicídio e registra como homicídio simples ou qualificado. Quando chega no MP, o promotor vê o caso e diz “não, isso aqui é um feminicídio”. Então quando ele faz a denúncia, acaba alterando a qualificadora. Por isso às vezes dá essa diferença e é perfeitamente compreensível — explica a advogada e especialista em questões de gênero, Tammy Fortunato.
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Divergência de dados pode prejudicar políticas públicas, diz especialista
Apesar do caso na justiça “voltar” a ser considerado um feminicídio, a morte de mãe e filha continua longe das estatísticas. Isto porque a SSP só leva em conta as autuações que constam no inquérito e não como ele é levado até o julgamento. Ou seja: se a pessoa foi indiciada por homicídio, mas a promotoria denunciou por feminicídio, o que vale para os dados oficiais do Estado é o indiciamento.
Uma situação parecida com a tragédia de Lages ocorreu no caso envolvendo a grávida de Canelinha. A acusada pelo crime foi indiciada pela Polícia Civil por homicídio triplamente qualificado, mas o MP, ao analisar as provas, decidiu denunciá-la por feminicídio.
O que acontece é que esses dois casos acabam causando divergência nos dados estaduais como explica Fortunato.
— Com a falta de comunicação entre os diferentes sistemas estatísticos, existe sim um prejuízo, até porque o Tribunal de Justiça também possui outros dados sobre feminicídio e violência contra a mulher. O ideal é que haja consonância entre eles —, aponta.
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Apesar de não considerar a divergência uma situação de subnotificação, Fortunato alega que isso ainda pode prejudicar, de alguma forma, políticas públicas que levem em consideração esses dados.
— Sempre que há subnotificação de casos de feminicídio, homicídio, estupro ou de violência doméstica isso acaba prejudicando não só as estatísicas, mas também a adoção de políticas públicas para mudar essa realidade de acordo com aquele ambiente —, salienta.
O NSC Total tentou localizar a defesa do acusado, mas ele não foi encontrado até a publicação desta reportagem.
O que diz a SSP/SC
“O procedimento foi instaurado no sistema pela comarca de Palhoça como um auto de prisão em flagrante, sendo lavrado neste município porque foi onde o autor foi preso. O auto de prisão em flagrante foi cumprido com base no artigo 121 inciso IV do Código Penal – homicídio qualificado à traição, de emboscada ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido -, com base no depoimento do autor e as motivações do crime por ele oferecidas ao delegado.
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O procedimento policial foi para Ministério Público que requisitou ao delegado de Lages novas investigações. Realizando as novas diligências, o Ministério Público denunciou o autor por duplo feminicídio”
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