A temporada de 2018 será histórica para o surfe brasileiro. Pela primeira vez desde o surgimento do circuito mundial da categoria, na década de 1970, os atletas daqui serão maioria na elite. Dos 36 surfistas que participarão do World Surf League (WSL) , com etapas nas melhores ondas do mundo, nada menos que 11 nasceram no Brasil. É um contingente superior ao de australianos, sul-africanos, americanos e havaianos, que historicamente dominaram a modalidade.
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Entre os brasileiros, são cinco caras novas em 2018. E esse novo pelotão da Brazilian Storm, como ficou conhecida a atual geração nacional, traz o foco do esporte de volta para Santa Catarina, após anos de soberania paulista. Explica-se: dos 11 brasileiros da elite, seis deles são nascidos no Estado ou escolheram o nosso litoral para morar e treinar.
É uma espécie de renascimento para o esporte em Santa Catarina, que já viveu tempos gloriosos com nomes como a vice-campeã mundial Jacqueline Silva e os irmãos Teco e Neco Padaratz. As últimas temporadas vinham sendo de vacas magras, embora o campeão mundial de 2015, Adriano de Souza, resida em Florianópolis desde 2010.
Nas últimas temporadas, o Estado contou com poucos nomes de destaque, como Alejo Muniz e Ian Gouveia. A maior parte do glamour ficou com paulistas, liderados por Gabriel Medina e companhia, e potiguares, com a dupla Ítalo Ferreira e Jadson André.
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Sucesso de SC era só uma questão de tempo
Para Teco Padaratz, bicampeão do QS (segunda divisão) na década de 1990, o retorno do protagonismo do Estado era questão de tempo, já que sempre houve um trabalho sério por parte da federação local, mesmo com a perda da etapa do WCT para o Rio de Janeiro em 2010.
– O surfe não é uma brincadeira por aqui. Levamos tudo muito a sério. Para ser um atleta profissional, é necessário muita disciplina – opina Padaratz.
A manezinha Jacque Silva concorda e aponta outro fator: a variedade de ondas atrai atletas de outros Estados e ajuda na formação de novos talentos. Segundo ela, mesmo com uma ondulação fraca e vento forte, sempre é possível achar um pico com uma marola surfável:
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– Se o atleta quiser, ele pode cair na água todos os dias.
Exemplo de surfista que veio para Santa Catarina e não saiu mais é Fábio Gouveia, paraibano considerado uma lenda do esporte. Era o ano de 2002 e a sua carreira já caminhava para o fim, mas ele julgou necessário buscar novos ares para “balancear” o seu surfe. Além disso, estava atrás de um local com boa qualidade de vida e de ondas para ajudar no desenvolvimento dos filhos. Diante disso, Santa Catarina foi a primeira opção que lhe veio à cabeça. Para ele, esse hiato de protagonismo catarinense foi um acaso, já que sempre houve investimento na base, o que é fundamental para o surgimento de novos atletas.
– Os astros se realinharam. Todo o resultado que se colhe é fruto de um trabalho anterior. Com um circuito amador forte, a chance de formar um campeão é muito maior — opina Gouveia.
Variedade do clima e de ondas atrai atletas
Outro ponto considerado diferencial de Santa Catarina em relação aos outros Estados é o clima. Com as quatro estações bem definidas, o surfista se adapta mais facilmente às diferentes condições que encontra mundo afora, em especial nos picos mais frios. Como exemplo, Teco Padaratz e Fábio Gouveia lembram uma vez em que foram competir na Inglaterra. Depois de um treino, o catarinense conta que encontrou o paraibano tremendo, com as mãos inchadas e os pés duros:
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– Ele ficou uns 40 minutos com a mão em um pote de água quente, reclamando – conta Padaratz, às gargalhadas ao lado do amigo.
Atual diretor sul-americano da World Surf League (WSL), entidade que organiza o circuito, Xande Fontes também acredita que os atuais resultados são fruto de uma organização que foi feita lá atrás. Ele recorda que tanto Tomas Hermes quanto Willian Cardoso se tornaram profissionais quando ele era presidente da Federação Catarinense (Fecasurfe).
– Somos hoje o Estado no mundo com o maior contingente de surfistas na elite do circuito mundial. Eles são a prova de que é o investimento na base que garante sempre o surgimento de novos atletas – opina Fontes.
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Quem são os catarinenses
Os catarinenses ou radicados que estarão no tour em 2018 são Yago Dora, Tomas Hermes, Willian Cardoso, Ian Gouveia, Michael Rodrigues e Adriano de Souza. Destes, os quatro primeiros vivem em Santa Catarina desde a infância. Além deles, completam o time brasileiro Gabriel Medina (SP), Filipe Toledo (SP), Caio Ibelli (SP), Ítalo Ferreira (RN) e Jessé Mendes (SP).
Para Tomas Hermes, de Barra Velha, Santa Catarina ainda sofre um pouco por ser um Estado menos populoso e gerar menos atenção da mídia do que São Paulo, por exemplo. Em função disso, ele julga ser um pouco mais trabalhoso “construir uma carreira” por aqui, apesar da ótima variedade de ondas. Isso, no entanto, está mudando aos poucos e ele crê que os bons resultados do futuro servirão cada vez mais de motivação.
– A nova geração vai vir com tudo. A tendência é de que tenhamos bons nomes para o futuro.
Nomes para ficar de olho
Santa Catarina também desponta por oferecer diversas promessas na modalidade. Uma delas é Lucas Silveira, campeão mundial júnior de 2016 e um dos favoritos para subir para o WSL. Nascido no Rio de Janeiro, ele se mudou para Florianópolis ainda criança e aqui modelou o seu surfe. Também chama a atenção Matheus Herdy, sobrinho do ex-surfista da elite Guilherme Herdy, que já compete no Qualifying Series (segunda divisão) aos 17 anos de idade.
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No feminino, vale ficar de olho no nome de Tainá Hinckel. Há uma semana ela competiu no mundial junior na Austrália e terminou na terceira colocação.
Conheça os nomes catarinenses no mundial:
Yago Dora – Florianópolis
Com apenas 21 anos, é tido como o mais promissor surfista brasileiro da nova geração. No ano passado, venceu dois campeonatos de 6 mil pontos do Qualifying Series (QS), a segunda divisão da modalidade, que garantiram a ele o acesso ao WCT com folga. Também participou da etapa brasileira da elite, em Saquarema (RJ), onde derrotou os campeões mundiais Gabriel Medina, Mick Fanning e John John Florence, dando uma pequena amostra do que tem a oferecer.
Filho do ex-surfista profissional e treinador Leandro Grilo, Dora nasceu em Curitiba e se mudou para Florianópolis com apenas três anos. Seu começo no surfe foi um pouco “tardio”, aos 11 anos. Porém, os resultados apareceram rapidamente. Um ano depois, optou por disputar o circuito paranaense da categoria e terminou como vice-campeão. Aos 15 anos já participava de filmes e viagens ao redor do mundo, impressionando até mesmo os gringos com suas performances no freesurf.
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Agora, pretende concentrar todos os esforços no WCT, tanto que nem deve defender o seu título do QS de Newcastle, na Austrália. Na segunda divisão, pretende disputar apenas as etapas de 10 mil pontos, mais valiosas.
– O foco é total no CT. Quero me adaptar bem e permanecer – diz.
Um exemplo da dificuldade em ficar na elite foi o do australiano Ethan Ewing em 2017. Campeão mundial júnior em 2016 e considerado a grande promessa daquele país, teve um desempenho terrível no último ano e terá de voltar ao QS.
Completamente adaptado a Santa Catarina, Yago diz que o Estado atrai atletas por duas razões: variedade de ondas e qualidade de vida.
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– As praias, especialmente em Floripa, são todas perto uma da outra. E tem para todos os gostos. É bom demais.
Willian Cardoso – Balneário Camboriú
Apelidado de Panda pelo tamanho, Cardoso é um veterano do QS. Aos 31 anos, esteve perto de se classificar algumas vezes para a elite, mas sempre “ficou na portinha”, como dizem os surfistas. A sorte mudou justamente na temporada em que ele traçou como a da sua última oportunidade. No fim de 2016, o joinvilense perdeu o patrocinador principal e, sem uma fonte de financiamento, precisou da ajuda do sogro para continuar competindo no ano seguinte. Já estava, inclusive, mapeando opções para depois que deixasse o surfe competitivo.
– Eu estava desanimado. Era meu último ano.
A esperança voltou depois do meu vice-campeonato em Balito, na África do Sul, que me rendeu 8 mil pontos. Ali que as coisas mudaram. Depois, fiz quartas de final em Portugal (outros 5,2 mil pontos) e cheguei no Havaí precisando passar só uma bateria, uma situação muito diferente das outras vezes em que eu quase me classifiquei – conta.
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Atualmente, o quadro promete ser radicalmente e diferente. Há uma semana, assinou com um novo patrocinador. Para melhorar, as ondas do WCT, com mais qualidade, encaixam-se melhor no estilo de Panda, baseado no surfe de borda, com rasgadas e batidas muito fortes. Exemplo disso foi quando competiu como substituto na etapa australiana de Bell´s Beach, a mais tradicional do circuito, em 2013. Eliminou ninguém menos que o 11 vezes campeão mundial Kelly Slater na terceira fase e só parou nas quartas de final. A perspectiva de um bom desempenho anima também quem tem conhecimento de sobra.
– Acho que o Willian pode surpreender e ter um bom ano. Experiência não falta para ele – diz Teco Padaratz.
A visão de Cardoso – que começou a surfar aos 9 anos quando se mudou para Balneário Camboriú, onde mora até hoje – é semelhante. Ele diz não querer “entrar e sair” e sabe que não pode errar para permanecer na elite.
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– Vou aproveitar cada segundo como se essa foi a minha última chance. Quero ficar pelo menos três anos lá dentro. Planejo um ano de conquistas – diz.
Depois de tanto esforço para alcançar o objetivo, é melhor não duvidar.
Tomas Hermes – Barra Velha
Assim como o grande amigo Willian Cardoso, Tomas Hermes lutou por muitos anos até conseguir a classificação para o WCT. Em 2016, havia chegado bem posicionado às duas últimas etapas do QS, no Havaí, porém machucou o pé e teve de competir no sacrifício, sem sucesso. Essa mesma lesão o deixou fora da água por seis meses. Ele garante, no entanto, que foi esse tempo parado que o fez evoluir mentalmente.
– Foi um período de evolução pessoal muito grande. Aprendi a sentir e conhecer mais meu corpo e mente – conta Tomini, como é conhecido pelos amigos.
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Quando voltou a competir, em maio, os resultados apareceram. Depois de um nono lugar no Japão, conseguiu o vice-campeonato no US Open, na Califórnia, e entrou no top 10 para não sair mais. Ainda chegou à semifinal em Haleiwa, no Havaí, para fechar o ano na quinta colocação.
Para 2018, no entanto, a preparação será completamente diferente. Ele pretende viajar mais cedo para os locais de competição para fazer uma completa adaptação, em especial em ondas fortes e tubulares como Teahupoo, no Taiti, onde nunca esteve.
– Eu me sinto o mais preparado possível. Quero desfrutar o máximo, até para ter bons resultados. Não vou me fechar ao mundo – diz o surfista de 30 anos.
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Campeão brasileiro de surfe profissional em 2011, Hermes nasceu em Taubaté (SP) e se mudou para Barra Velha com quatro anos. Foi no litoral norte de Santa Catarina que a mosca do surfe o picou, quando tinha 10 anos, por influência do irmão. E essa chama, diz, nunca vai se apagar:
— Sou um cara muito fissurado por surfe. Nada me tira a alegria de surfar, em qualquer condição. Quando adolescente, eu era daqueles que ficavam horas e horas vendo os filmes de surfe, com caras como o Kely Slater, Mick Fanning e Joel Parkinson.
Pode até ter demorado, mas agora ele vai ter a chance de surfar contra os ídolos de infância.
Michael Rodrigues – Florianópolis
A trajetória até o WCT foi tortuosa para este jovem nascido em Brasília. Especialista em aéreos e ondas pequenas, ele terminou 2017 na 11a colocação no ranking do QS. Estava fora, portanto, da zona de classificação para a elite. A boa notícia só veio depois do Pipeline Masters, a última etapa do WCT, quando tanto o californiano Kanoa Igarashi quanto o brasileiro Ítalo Ferreira garantiram a dupla qualificação (conseguiram se classificar pelo WCT e pelo QS), abrindo vaga para Rodrigues e também para o norte-americano Patrick Gudauskas.
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– Depois que eu consegui dois vice-campeonatos na Europa, fui pego pelo nervosismo. Estava dormindo pouco, com o nível de estresse muito alto. Não consegui lidar com aquele momento – lembra Rodrigues.
O medo era de que se repetisse o que aconteceu em 2015, quando precisava apenas passar algumas baterias no Havaí para garantir a vaga, que não veio. Passada toda a tormenta, ele garante estar preparado para voos mais altos:
– Tenho trabalhado bastante para chegar num top 5, quem sabe? Estou fazendo por onde e vou me doar completamente ao circuito.
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Com quatro anos de idade, Michael se mudou para o Ceará, onde moldou o estilo de surfe na praia do Futuro. Aos 18 anos, já como profissional, enfrentou um problema com a federação local e resolveu experimentar novos ares. A escolha por Santa Catarina pareceu natural.
– Do Brasil, é o lugar que tem as melhores ondas. Algumas são até parecidas com as que a gente encontra no circuito. E nem é tão frio assim como dizem – conta, rindo.
Foram quatro anos vivendo sozinho na Barra da Lagoa, em Florianópolis. No ano passado, a família veio junto.
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– Acho que tem algo a ver – brinca.
Ian Gouveia – Florianópolis
Filho de peixe, peixinho é. O conhecido ditado popular cabe perfeitamente para Ian Gouveia, que vai para o seu segundo ano entre os melhores do planeta. Filho da lenda paraibana Fábio Gouveia, um dos pioneiros do esporte competitivo no país, esse pernambucano de 25 anos teve o surfe moldado nas ondas da praia Mole, no leste de Florianópolis. Foi ali que, aos 10 anos, começou a levar o esporte mais a sério, depois que o pai se mudou de Recife para Florianópolis.
– Foi onde tudo começou para mim. A maioria das coisas que eu sei hoje são graças às praias de Floripa. Sou muito grato a isso – diz Ian.
Fábio Gouveia resolveu se mudar para Florianópolis já no fim da carreira, em 2002. Além das boas ondas, buscava um local com melhores oportunidades para os filhos desenvolverem o potencial.
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Na época, o Estado contava com um circuito amador muito forte, o que estimulava o surgimento de novos talentos. Além de Gouveia, atletas como Tomas Hermes e Willian Cardoso também se beneficiaram desta semente.
Todo o suporte familiar ajudou a formar o surfista que Ian é hoje. Ele não se incomoda com as associações com o pai, porém garante que pretende trilhar o próprio caminho. Já provou do que é capaz no ano passado, com boas campanhas nas ondas tubulares de Fiji e Pipeline. A semifinal no Havaí, aliás, foi o que lhe garantiu a requalificação, deixando para trás o ex-campeão mundial Joel Parkinson e só parando diante de John John Florence, que virou a bateria no último minuto:
– É um evento de muito prestígio e eu vim com muita confiança. Eu estava muito atrás no ranking e não tinha nada a perder. Foi tudo dando certo e se encaixando. Coloquei um pouco do meu conhecimento em prática. Eu estava me sentindo bem no dia em que mais precisava e no fim valeu a pena.
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Adriano de Souza – Florianópolis
A história de Adriano de Souza com Santa Catarina começou ainda na década passada. Era uma festa de encerramento da etapa catarinense do circuito mundial (hoje disputada no RJ). Foi ali que o local do Guarujá (SP) conheceu a modelo Patricia Eicke, hoje sua mulher. Não demorou a se mudar. Além do amor, o Estado lhe oferecia boas ondas. Como resistir? Mesmo morando desde 2010 em Floripa, onde reside no Novo Campeche, Mineirinho conta que ainda não se sente um local e mantém um respeito pelos nativos.
– Os catarinenses são os donos da área, e eu não sou um cara que vou querer brigar pelo meu espaço. Então, como eu sou o Mineirinho, como quieto, vou ficar na minha, pegando as minhas ondinhas. Mas se Deus quiser, um dia meus filhos vão ser metade catarinense e daí vão poder brigar pelo seu espaço — declarou em 2016, antes de competir em uma etapa do QS na praia da Joaquina.
A essa época, ele já tinha se consagrado campeão mundial e chamado atenção da mídia global. A sua maior característica sempre foi a garra e o amor ao surfe. Vindo de uma família pobre da baixada santista, lembrou, ao levantar a taça de melhor do mundo, da primeira prancha, comprada com muito esforço:
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– Dedico esse título ao meu irmão, que por R$ 30 comprou uma prancha para mim. Na época era muito dinheiro para ele. Hoje estou no topo do mundo por R$ 30 reais.
Prestes a completar 31 anos, Mineirinho continua a exercer influência sobre a nova geração. Não é à toa que ele carrega a alcunha de Capitão Nascimento, o líder da Brazilian Storm.