Um par de chinelos vai mobilizar a maior instância do Poder Judiciário Brasileiro. Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) terão de decidir, em data a ser definida, pela liberdade ou detenção de um homem condenado a um ano de prisão e dez dias-multa pelo furto das sandálias, cujo valor era estimado em R$ 16.

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O crime ocorreu em Minas Gerais e, na última terça-feira, foi discutido pela Primeira Turma do STF. O relator do caso, ministro Roberto Barroso, entendeu que o assunto deveria ir à plenário para que possa ser estabelecido um entendimento comum para casos futuros. O objetivo é discutir entre os ministros o que pode ou não ser enquadrado no “princípio da insignificância” (que não considera o ato praticado como um crime).

A indefinição de tal conceito pode ser uma das causas para que processos pequenos assim sem prolonguem até o STF. Conforme especialista ouvido pelo Grupo RBS (leia a entrevista abaixo), as garantias da lei dadas aos réus e a incapacidade de esferas menores resolverem problemas também justificam situações como essa.

O longo caminho até o STF se iniciou assim: o dono do par de chinelos teria prestado queixa na polícia, que finalizou um inquérito do caso e encaminhou à Justiça. Como o ladrão de chinelos já tinha passagem pela polícia, a Justiça de Minas Gerais decidiu que ele deveria cumprir a pena em regime semiaberto (podendo deixar a cadeia durante o dia para trabalhar). Mas a Defensoria Pública da União levou o caso para a segunda instância, pedindo que a condenação fosse suspensa, pois o furto tinha valor irrisório. O tribunal local negou. Então o assunto foi parar no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que considerou que não deveria analisar o caso. Mais um recurso, e o furto dos chinelos chegou ao STF.

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Nos últimos anos, outros processos bizarros, como o furto de galinhas e peças de picanha, chegaram à Corte Suprema.

Aí você deve estar se perguntando: o STF não tem louça bem mais suja para lavar? Tem. Mas por que casos como esse chegam até lá?

O Grupo RBS conversou com o ex-procurador de Justiça Lenio Streck, atualmente advogado e professor de Direito Constitucional na Universidade do Vale do Sinos (Unisinos). Leia as respostas:

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Por que um caso pequeno como esse pode chegar ao STF?

O juiz condenou. O réu pode apelar ao Tribunal de Justiça, a segunda instância. No TJ ele é condenado de novo, aí ele tem duas possibilidades: propor recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), dizendo que houve má interpretação da lei federal, ou propor recurso extraordinário, alegando uma violação da Constituição. Ele pode inclusive entrar com os dois recursos ao mesmo tempo. Se o STJ também não resolve, o caso vai para o STF.

Mas isso não revela uma falha na Justiça?

Isso revela o quanto, neste sentido, o sistema brasileiro é esquizofrênico, que acaba fazendo com que um furto de chinelos chegue ao STF. Isso não acontece em nenhum país do mundo. Isso acontece no Brasil por conta de uma sistemática importa em 1943, quando foi criado o nosso Código de Processo Penal. Com a nova Constituição, aumentaram muito as garantias. É por isso que hoje, por exemplo, se tem muitos mais os recursos extraordinários do que antigamente.

Quanto tempo leva para que casos assim cheguem ao STF, quando chegam?

Geralmente levam menos de três anos para chegar o Supremo.

E que custo eles geram?

Isso não é possível estimar. Mas tem uma informação relevante: de janeiro a julho de 2013, o Supremo havia julgado mais de 5 mil habeas corpus. Por quê? Porque as outras instâncias falharam, como nesse caso do chinelo. Ninguém pode ficar preso por um galo furtado, também. O juiz deveria ter resolvido isso. O tribunal deveria ter resolvido isso. Mas, como ninguém resolveu, cabe ao STF resolver. Vai para o Supremo aquilo que falhou em outras instâncias.

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O relator do caso do chinelo considerou que deveria ser adotado o “princípio da insignificância”, e a Turma do STF disse que ele deveria ser discutido em plenário. Que princípio é esse?

Isso só se aplica para um furto. Um furto só tem relevância social e penal, se ele tiver algum valor. Alguma coisa muito pequena é insignificante, e não pode ser considerada um crime. Esse é o princípio. Só que existe uma divergência muito grande sobre esse conceito. É por isso que casos como esse chegam ao STF, que costuma negar a “insignificância” quando o réu é reincidente.

Quais as divergências sobre o princípio?

O problema é que, no Brasil, cada jurista, cada promotor, tem na sua cabeça o que ele pen s a que é a “insignificância”. Ainda não conseguimos firmar um conceito do que isso seja. Essa é uma tarefa difícil, pois não existe fórmula, nem matemática para isso. Mas, enquanto não definirmos os mínimos critérios, que valham para todos, continuaremos discutindo se insignificantes são R$ 10 ou R$ 1 mil. Não pode ser assim. O Direito não é uma questão de opinião, mas de criteriologia.

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Casos bizarros que chegaram ao Supremo

GALO E GALINHA

Em abril deste ano, veio a público que o Supremo andava às voltas com ladrões de galinha. O furto de dois galináceos com valor estimado em R$ 40 atravessou todas as instâncias do Judiciário e foi parar no STF. O relator do processo, o ministro Luiz Fux, analisou o mérito, concordou que o caso preenchia os requisitos do “princípio da insignificância”. O processo foi arquivado.

PEÇAS DE PICANHA

Em 2013, chegou ao STF um crime ocorrido em um supermercado de São Lourenço, Minas Gerais. Um homem havia roubado duas peças de picanha, no valor estimado em R$ 69, no ano anterior. Ao analisar o caso, o relator do processo, ministro Ricardo Lewandowski, entendeu que o acusado mostrou que faz do crime um meio de vida, uma vez que responde a outros processos e já foi condenado por furto em outra ação. Por conta disso, manteve a condenação.