Indígenas de 15 comunidades espalhadas por Santa Catarina aguardam ansiosos para ocupar as terras de onde seus ancestrais foram expulsos durante o processo de colonização do Estado. Na maior parte dos casos, a burocracia de processos judiciais é o que impede o retorno de famílias a essas áreas.

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A demarcação e a concessão de terras indígenas não é um benefício do governo aos povos originários. A devolução dessas áreas está prevista no artigo 231 da Constituição Federal. O segundo parágrafo determina que "as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes".

Em Santa Catarina o processo de colonização expulsou as tribos dos locais em que elas tradicionalmente se desenvolveram. Durante vários anos, o governo contratou empresas que eram responsáveis por retirar as comunidades indígenas para abrir espaço para que não-índios ocupassem essas áreas.

Conforme documento do Conselho Estadual dos Povos Indígenas, ligado ao governo de Santa Catarina, foi só a partir dos anos 1970 que foi retomado o processo para que essas pessoas retornassem às terras de origem. Em 1988, quando a Constituição foi promulgada, vários desses grupos ainda não tinham ocupado novamente as áreas que lhes eram de direito.

Demarcações são questionadas na Justiça

Comumente, a demarcação das reservas indígenas acabam sendo questionadas na Justiça. Em Santa Catarina, o caso mais famoso é o da Reserva do Morro dos Cavalos, em Palhoça. Apesar de estudos mostrarem que a comunidade indígena da região vive no mesmo local desde o século 16, o governo do Estado entrou na Justiça alegando ser contrário à demarcação feita pela Funai.

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O governo estadual defende que os povos que vivem na região só apareceram por ali no começo dos anos 2000. O governo alega ter um estudo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) que contradiz os documentos da Funai a respeito da presença de índios originários na região.

Atualmente, esse processo se encontra em análise no Supremo Tribunal Federal. Os autos estão conclusos para que o relator, ministro Alexandre de Morais, emita um parecer final sobre o caso, que ainda não tem data para ser efetivamente julgado.

Outro caso de repercussão envolvendo a luta indígena pela demarcação, mas em âmbito nacional, foi a tentativa do governo federal de tirar da Funai a atribuição para demarcar terras. Por meio de uma medida provisória (MP), o presidente Jair Bolsonaro (PSL) tentou repassar essa função ao Ministério da Agricultura, atendendo a interesses do agronegócio, contrários à cessão das terras às populações indígenas.

À época do anúncio, o presidente ainda zombou das críticas que recebeu pela medida provisória, que acabou sendo derrubada no Supremo Tribunal Federal. Ele disse que, enquanto estiver na cadeira, não será feito nenhum novo decreto de homologação de áreas indígenas.

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— A questão de reserva indígena quem decide, na ponta da linha, sou eu. Sou eu quem assina o decreto demarcatório e eu não vou assinar nenhuma nova reserva indígena no Brasil — concluiu.

Santa Catarina possui 29 comunidades indígenas

Conforme a Fundação Nacional do Índio (Funai), Santa Catarina possui 29 comunidades indígenas, incluindo as 15 que aguardam a demarcação e regularização das terras. Essas comunidades são das etnias Guarani, Xokléng e Kaingang.

Somadas, as áreas que já foram delimitadas ocupam um total de 1001,6 quilômetros quadrados. Isso é equivalente a 1,05% de toda a área de Santa Catarina.

Para efeito de comparação, essa área é um pouco menor do que a de Joinville, que possui 1.131 quilômetros quadrados. No entanto, em vez de ser uma faixa de terra contínua, como uma cidade, ela está espalhada em pequenas porções que ficam em 21 municípios catarinenses e na cidade paranaense de Palmas, na divisa entre os dois estados.

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Das 29 áreas, 14 constam no site da Funai como regularizadas. Outras 10 estão como declaradas, quatro são consideradas como na fase de estudos e uma está em fase de regularização como reserva indígena, ou seja, o governo está em processo de desapropriações, compra de terras ou outras situações.

Tipos de territórios indígenas

De acordo com a Fundação Nacional do Índio (Funai), existem quatro tipos de terras indígenas. Elas são descritas seguindo a Constituição, o Estatuto do Índio e um decreto presidencial de 1996. Veja quais são as denominações:

—> Terras Indígenas Tradicionalmente Ocupadas: São as terras indígenas de que trata o art. 231 da Constituição Federal de 1988, direito originário dos povos indígenas, cujo processo de demarcação é disciplinado pelo Decreto n.º 1775/96.

—> Reservas Indígenas: São terras doadas por terceiros, adquiridas ou desapropriadas pela União, que se destinam à posse permanente dos povos indígenas. São terras que também pertencem ao patrimônio da União, mas não se confundem com as terras de ocupação tradicional. Existem terras indígenas, no entanto, que foram reservadas pelos estados-membros, principalmente durante a primeira metade do século 20, que são reconhecidas como de ocupação tradicional.

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—> Terras Dominiais: São as terras de propriedade das comunidades indígenas, havidas, por qualquer das formas de aquisição do domínio, nos termos da legislação civil.

—> Interditadas: São áreas interditadas pela Funai para proteção dos povos e grupos indígenas isolados, com o estabelecimento de restrição de ingresso e trânsito de terceiros na área. A interdição da área pode ser realizada concomitantemente ou não com o processo de demarcação, disciplinado pelo Decreto n.º 1775/96.

Demarcação das áreas indígenas é um direito determinado pela Constituição Federal
Demarcação das áreas indígenas é um direito determinado pela Constituição Federal (Foto: Divulgação)

Fases da demarcação de terras indígenas

As demarcações não são aleatórias. Para que uma comunidade possa conseguir o direito de ocupar uma porção de terra, é preciso comprovar perante a Funai e, na maioria das vezes, à Justiça, que ela é originária de determinada região. Em geral, o processo é composto de cinco fases.

—> Estudos prévios: Realização dos estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais, que fundamentam a identificação e a delimitação da terra indígena.

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—> Delimitação da área: Depois dos estudos serem aprovados pela presidência da Funai, a conclusão é publicada em Diário Oficial. Nesse momento, órgãos governamentais, do Estado ou da União podem apresentar contraditórios administrativos, que serão analisados pelo Ministério da Justiça, antes da expedição de Portaria Declaratória da posse tradicional indígena.

—> Portaria ministerial: Encerrada a análise dos contraditórios, o ministro da Justiça deve decidir se emite ou não a chamada Portaria Declaratória. Com base nesse documento, é liberada a demarcação da área, com a materialização dos marcos e georreferenciamento.

—> Homologação: Após a portaria declaratória, o presidente da República deve emitir um decreto reconhecendo a demarcação efetuada, incluindo os limites materializados e georreferenciados da área.

—> Regularização: Depois do decreto presidencial, a área é registrada em cartório, em nome da União e também na Secretaria do Patrimônio da União.

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—> Interditadas: Áreas Interditadas, com restrições de uso e ingresso de terceiros, para a proteção de povos indígenas isolados. Esses locais também passaram por todos os outros processos, mas ficam inacessíveis a não-índios, salvo sob autorização direta da Funai.

Demarcação da reserva do Morro dos Cavalos se arrasta desde os anos 1990
Demarcação da reserva do Morro dos Cavalos se arrasta desde os anos 1990 (Foto: Betina Humeres / Diário Catarinense)

Luta indígena pela demarcação de terras

O coordenador local do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Jacson Lopes Santana, diz que as comunidades indígenas estão ativas nas discussões a respeito de novas demarcações e finalização dos processos vigentes.

— Eles não cansam de lutar. Eu já vi velhinhos que, antes de morrerem, diziam que queriam ver o território demarcado, mas infelizmente acabaram morrendo. Tem muito disso. A luta se dá, é constante — afirma Santana.

De acordo com ele, as populações acabam reféns de políticos, que prometem ajudar na resolução dos conflitos de terras, mas que não os ajudam na prática. Ele, contudo, pontua que o movimento indígena não deixa de estar atuante na busca pelos próprios direitos.

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Santana também cita outras dificuldades enfrentadas pelos indígenas, como o preconceito, que, segundo ele é muito forte em determinadas regiões, como o Oeste do Estado, onde estão localizadas a maioria das reservas indígenas de Santa Catarina.

Um dos exemplos de intolerância aconteceu em fevereiro deste ano, quando índios da aldeia Tarumã, em Araquari, no Norte de Santa Catarina, denunciaram que o local estava sendo vigiado por drones e que uma casa de rezas foi queimada por invasores.

Além disso, os grupos que não possuem locais definidos, mas querem manter as tradições, precisam viver amontoados com outros índios, nas áreas que já estão devidamente demarcadas, até que possam ter as próprias casas.

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