A maior enchente da história do Rio Grande do Sul, que destruiu cidades, matou mais de cem pessoas e deixou milhares de pessoas desalojadas, trouxe a tona a discussão sobre o impacto das mudanças climáticas. Afinal, o que está acontecendo com o mundo diante de tanta tragédia?
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— Chegamos a esse ponto negligenciando uma série de previsões que já vêm sendo feitas, porque a gente não tinha sentido na pele a quantidade de eventos extremos e a intensidade estamos sentindo hoje. O que pode acontecer é que isso vai ficar cada vez mais frequente e cada vez mais intenso — explica a professora de Física da UFSC, Marina Hirota Magalhães.
A pesquisadora, que estuda os efeitos das mudanças climáticas no Sul do Brasil e as interações entre biosfera e atmosfera, explica que o momento atual é consequência da negligência de diversos alertas feitos ao longo das últimas décadas. Ela cita os primeiros relatórios de mudança do clima nos anos 1990, que nas décadas seguintes evoluíram e que, junto a novos grupos de trabalho, receberam pouca atenção das autoridades e da população.
Entre os principais problemas apontados pela pesquisadora está a falta de um plano de contingenciamento e preparação para um cenário do qual a humanidade não tem como fugir.
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— Então, se começa a alagar a sua casa, você faz o quê? Você sai? O que você leva? Coisas básicas. O que você precisa numa situação dessa? Porque se isso começar a acontecer com mais frequência, com mais intensidade, como é previsto, como a gente vai viver nesse novo normal? Eu acho que essa é a grande pergunta — destaca a professora.
A professora estuda “tipping points” no clima, que são “pontos de não retorno”, ou seja, marcadores a partir dos quais a situação em um sistema se torna crítica e as mudanças no meio ambiente passam a se tornar aceleradas e independentes da causa inicial. Globalmente, esse “ponto de não retorno”, no qual as mudanças climáticas seguem aumentando em grande velocidade mesmo se as causas do problema fossem interrompidas totalmente, ainda não foi atingido. Mas em algumas escalas locais isso já é uma realidade.
— Se você muda o uso da terra de floresta para pasto, de floresta para soja, para agricultura, isso tem um efeito na atmosfera, em termos da água, que é jogada para a atmosfera, do carbono que é jogado para a atmosfera. Vai chegar uma hora que você pode começar a ter uns comportamentos que você não esperava, menos previsível de uma forma geral — explica Marina.
Entre as ações que acarretam nessas mudanças no clima e nas consequentes intensificações das mudanças climáticas estão práticas como a do desmatamento. Mudando o uso da terra, a temperatura aumenta, o que influencia também no ciclo da água, em como ela será absorvida, evaporada e voltará para a terra. O impacto disso é sentido no clima regional, que em um efeito cascata reflete no clima global. Marina explica, contudo, que para as mudanças climáticas não existem fronteiras.
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— A gente tem fronteiras geográficas para delimitar estados, países, municípios, mas não em funcionamento do clima e do sistema terrestre. Então, qualquer mudança que se faça, tanto na atmosfera tanto na temperatura global do planeta, quanto na cobertura da superfície, qualquer mudança pode afetar um outro lugar. Pode afetar um lugar perto dali ou afetar um lugar muito mais longe dali. Tudo depende do tamanho da área — destaca.
El Niño é um dos responsáveis
O El Niño, fenômeno que aumenta a temperatura da superfície da água no Oceano Pacífico, provocando nuvens mais carregadas e chuva, também possui impacto nesse processo e é acentuado pelas mudanças climáticas. O tema é foco de estudo das pesquisas da professora de Oceanografia da UFSC, Regina Rodrigues.
O fenômeno do El Niño é recorrente e sempre ocorreu, porém tem se tornado cada vez mais frequente e durado mais tempo. Além disso, os impactos nos eventos climáticos têm se mostrado mais intensos.
— As mudanças climáticas estão intensificando um pouco o El Niño. Então, esses bloqueios atmosféricos, que deixam essa massa de ar quente, estão ficando um pouco mais fortes. E o outro fator é que, com as mudanças climáticas, a atmosfera está mais quente. Quando a atmosfera está mais quente, ela carrega mais umidade, onde os montantes de chuva são muito maiores. E é isso que ocorreu no Rio Grande do Sul. Chegamos as chuvas e precipitações muito, muito acima da média, que bateu recordes históricos — detalha a pesquisadora.
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Ela destaca que, anteriormente, os fenômenos El Niño e La Niña, que provocam chuvas intensas ou então secas na região Sul — neste caso o La Niña — eram intercalados com anos “neutros” em que não havia influência nem de um nem de outro fenômeno. Agora, os sistemas vêm um na sequência do outro.
— Como cientista, isso me preocupa muito. Hoje o que a gente vê é que a gente está pulando de anos consecutivos de La Niña, que também são ruins, que causam secas no Sul e chuvas torrenciais no Norte e Nordeste, e pulou já direto para um El Niño. E agora a gente tem previsão de voltar para a La Niña. Então não tem mais ano neutro, de normalidade. A gente vai de um lado para o outro e todos eles geram muitos extremos no Brasil — explica.
A professora da UFSC e integrante do grupos de pesquisa “Gestão da Logística Humanitária, Urbana e de Desastres”, Franciely Veloso Aragão, explica que o La Niña geralmente se reflete no Sul do país em condições climáticas mais secas e frias, com maior risco de secas e incêndios florestais. Contudo, somado às mudanças climáticas, o que era “previsível” se torna imprevisível e os fenômenos se tornam extremos.
— Embora a presença do La Niña possa mitigar temporariamente o risco de inundações, Santa Catarina ainda enfrenta uma série de desafios climáticos complexos. Por exemplo, a alternância entre períodos de seca intensa e chuvas torrenciais pode resultar em inundações repentinas e deslizamentos de terra, mesmo durante um período de La Niña — detalha Franciely.
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A pesquisadora explica, ainda, que o aumento das temperaturas, reflexo das mudanças climáticas e do aquecimento global também tem impacto direto nas chuvas mais intensas.
— O relatório recente da Organização Meteorológica Mundial (OMM) destacou que 2023 foi o ano mais quente já registrado, evidenciando o aumento das temperaturas globais. Esse aquecimento global resulta em maior evaporação da água dos oceanos, o que, por sua vez, eleva a umidade atmosférica e intensifica as chuvas. Como consequência, os sistemas de drenagem podem ficar sobrecarregados e os rios pode transbordar, levando a enchentes mais graves — afirma.
As mudanças climáticas contribuíram para as chuvas intensas que resultaram nas enchentes no Rio Grande do Sul. A situação torna as comunidades mais vulneráveis aos efeitos das inundações, especialmente em cidades pouco planejadas para ocorrências como essas. É o que explica a professora Daiane Genaro Chiroli da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), que estuda gestão urbana e de desastres
— Também é evidente que um plano diretor que não leve em consideração os riscos locais aumenta a exposição das pessoas aos perigos. O planejamento urbano inadequado, desprovido de medidas de prevenção e mitigação de desastres naturais, deixa as comunidades mais vulneráveis aos impactos adversos do clima — alega a professora.
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Santa Catarina pode viver algo parecido?
A resposta é sim. A tragédia vivida no Rio Grande do Sul, porém, serve de alerta para Santa Catarina. Isso porque, segundo a professora Daiane, as mudanças climáticas terão impacto em todo o mundo, afetando áreas vulneráveis que possuem risco para inundação e deslizamentos.
— O aumento das temperaturas globais tem o potencial de modificar os padrões de precipitação na região, ocasionando chuvas mais intensas e prolongadas. Isso, por sua vez, pode elevar consideravelmente o risco de enchentes e deslizamentos de terra em áreas vulneráveis do Estado. Portanto, existe uma possibilidade real de Santa Catarina vivenciar situações extremas de inundação semelhantes às do RS, caso as mudanças climáticas continuem a se intensificar — destaca.
Ela explica que as mudanças climáticas não resultam somente em enchentes, mas podem trazer também outros eventos climáticos extremos, como ondas de calor e secas prolongadas, o que pode resultar em problemas na infraestrutura urbana, aumento das temperaturas e escassez de água.
— Além disso, as cidades costeiras de Santa Catarina estão particularmente vulneráveis ao aumento do nível do mar e à erosão costeira, representando uma ameaça às comunidades litorâneas e à infraestrutura crítica. Portanto, é crucial desenvolver políticas eficazes e ações globais para enfrentar esses desafios. Isso inclui a necessidade de revisar e fortalecer os planos diretores das cidades, levando em consideração o histórico das áreas e garantindo a participação pública no processo de tomada de decisão — relata a pesquisadora.
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Estudos feitos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que algumas cidade do Rio Grande do Sul terão aumento de 60% no volume de tempestades nos próximos 30 anos. As regiões de maior atenção são o Nordeste do estado gaúcho e Centro-Sul de Santa Catarina, com variação de 40% a 60% de aumento nas chuvas. As informações são de O Globo.
Em outras áreas do Rio Grande do Sul, a intensificação dos temporais deve variar entre 20% a 40%. As informações do Inpe foram compiladas no Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil, do governo federal.
Outras regiões do país, como o Rio Grande do Norte, Ceará, Maranhão e Bahia também têm previsão de aumento de chuvas extremas segundo o estudo. Pesquisadores da PUC-Rio, Uerj, UFRB, Metodista e Fiocruz elaboraram mapas que mostram as áreas mais afetadas, material que está disponível para planejamento do governo federal e também para consulta pública.
Para chegar à previsão, são consideradas variáveis como radiação solar, temperatura, pressão, força dos ventos e histórico de chuvas. Esses índices são multiplicados pelo índice de gases de efeito estufa, o que tem gradativamente aumentado em todo o mundo.
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— A parte do modelo que é diretamente afetada com o aumento de gases de efeito estufa é a radiação, em seguida muda a temperatura, o aquecimento das superfícies, vento, as coisas vão se desencadeando. Cada ponto de todo o planeta tem um valor de vento, umidade e pressão: é assim que o modelo evolui. Se mudou a temperatura em todo o planeta, o que vai acontecer nessa região? São respostas que o modelo matemático traz. O clima se organizou de uma forma em que alguns lugares chove mais e em outros não chove. Os cenários indicam o aumento de chuva no Sul e menos no Centro do país — explica a pesquisadora do Inpe e uma das responsáveis pelo modelo, Chou Sin Chan.
No estudo, foi levantado também o Índice de Capacidade Municipal (ICM), que corresponde a capacidade dos municípios responderem a desastres climáticos. Nesse levantamento, 3.290 cidades apareceram com capacidade muito baixa de resposta a desastres climáticos.
Já o Índice de Risco Qualitativo (IRQ), que aponta a possibilidade de cada município sofrer um desastre, indica risco em pelo menos 80% do território nacional. Entre os desastres avaliados estão alagamento, enxurrada, seca, incêndios florestais, erosão, granizo, inundação, movimento de massa, onda de frio, ciclone, vendaval e tornado.
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