“A carne mais barata do mercado não 'tá mais de graça / O que não valia nada agora vale uma tonelada / A carne mais barata do mercado não 'tá mais de graça / Não tem bala perdida, tem seu nome, é bala autografada”
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Nos versos da canção Não Tá Mais de Graça, do álbum 'Planeta Fome', lançado em setembro por Elza Soares, a carne negra recebe o peso que tem, ela agora vale uma tonelada. A cantora que em 2002, no álbum 'Do Cóccix até o Pescoço', cantava "a carne mais barata do mercado é a carne negra", 17 anos depois continua falando sobre desigualdade racial, sobre mulheres e sobre a população brasileira.
Elza Soares escolheu minuciosamente o repertório deste novo projeto, selecionando o que queria cantar, dentro do contexto do país. São 12 faixas, entre inéditas e regravações, incluindo uma composição própria, Menino, a primeira vez que grava uma música sua.
Elza sabe o peso da sua história. Neta de escrava, a carioca nasceu em Padre Miguel, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro, sentiu na sua pele negra o peso do racismo no Brasil e quando escuta alguém dizer: ‘aqui no Brasil não existe isso de racismo’, tem uma resposta na ponta da língua:
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— Isso é uma loucura! Que vergonha.
Conversamos com a cantora e compositora, por telefone, para falar sobre o novo trabalho, sobre o Brasil e sobre racismo. Confira:
O álbum Planeta Fome retrata um Brasil desnutrido e doente. O que você acredita que o país precisa para se curar?
Vergonha. A gente precisa de vergonha, porque um país como o Brasil, cheio de gentileza, cheio de amor, de repente acaba tudo. Está faltando isso para as pessoas.
Na música Menino, de sua autoria, você deixa um recado. Esse menino se refere aos jovens, você acredita que está neles o futuro do nosso país?
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Lógico, essa garotada é o futuro do país, meu Deus do céu. Quem será o futuro do país? Eu não sou. Não será você. Precisamos desses meninos para o futuro do nosso país. Mas falo de um futuro realista, de realidade, futuro de amor, de gentileza. De tudo isso que a gente precisa.
Como é possível um jovem de periferia ver futuro se não tem acesso a educação de qualidade ou uma mulher entender que não precisa aceitar ser espancada mesmo em uma sociedade machista. Como é possível mudar esse jogo?
Olha, eu faço muitos trabalhos falando das mulheres. Porque mulheres unidas jamais serão vencidas. Eu acredito muito na mulher e tenho uma música Maria da Vila Matilde, que virou o hino das mulheres. Denuncia, por favor. É 180. Não tem que aceitar pancadas. Porque a mulher tem que aceitar essa sociedade machista? Parem com isso!! Por favor!!
Sobre Elza Soares compositora, como é o seu processo de criação. Você tem muitas composições feitas? Onde ficam arquivadas?
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A gente faz e guarda, quando pinta uma oportunidade a gente bota pra fora, como fiz com Menino e outras. Não nesses quatro últimos trabalhos, mas nos 84 trabalhos feitos, não são 34 como dizem. Acho que é a única cantora do Brasil que tem esse histórico. Eu não sou uma Chico Buarque de Hollanda, mas gosto de brincar.
Há muito tempo você vem lutando por igualdade, pelas mulheres, pelo respeito, pelos negros e pelos pobres. É isso que te motiva?
A desigualdade está aí e temos que lutar contra isso. Eu agradeço por essa luta e peço sempre que tenha o caminho certo para caminhar. Não me canso disso não. Mas eu não queria falar sozinha não, usem o microfone para isso. É isso que eu quero!
Você sempre esteve à frente do seu tempo, acompanhou muitas evoluções em várias questões de natureza social no nosso país, mas ainda convivemos diariamente com a desigualdade. Como você vê a contribuição do seu trabalho para essas questões?
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Acho que é por aí. Cantem comigo, por favor! Vamos lutar pela igualdade social! Pelas mulheres!
"Tem um Brasil que é próspero / Outro não muda / Um Brasil que investe / Outro que suga". Esse Brasil ainda tem solução?
Lógico que tem! Basta querer. A população tem força, é quem comanda e quem conduz. É só querer. Ficar sentado na cadeira não adianta de nada. E agora eu vejo o povo brasileiro sentado, adormecido.
Seu discurso é forte. 'Planeta Fome' fecha uma trilogia de trabalho em que você apresenta uma realidade que não pode ser desatrelada a questões políticas, o que não agrada a todos. Você acredita que é esse o papel do artista?
Levanta, por favor! Vamos para rua! Vamos gritar!
"Aqui no Brasil não existe isso de racismo", o que você pensa quando escuta uma frase dessas? O que você tem para dizer para quem vê o país dessa forma?
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Isso é uma loucura! Que vergonha. O Brasil é o país mais racista que existe, não é o alemão, não é o italiano, não é o francês, é o Brasil o país de negros e mais racista. Não entendo isso não.
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Como a pessoa que fala isso pode entender o que é o racismo?
Não entende. Eu não entendo. Tá na cara. Se falar que o país não é racista eu vou ficar muito triste.
Na canção Não Tá Mais de Graça você canta: "Não tem bala perdida, tem seu nome, é bala autografada". Quem assina essa conta?
Não sei. Não sei. Tá autografada mas eu não sei quem autografou.
Você regravou a canção Pequena Memória Para Um Tempo Sem Memória, de Gonzaguinha, e canta "Memória de um tempo / Onde lutar por seu direito / É um defeito que mata". Nada é mais atual que isso, mas nada é tão retrógrado quanto isso. Como devemos lidar com essa dualidade do nosso tempo?
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Meu amor, você está perguntando algo que você tá sabendo. Você sabe bem.
Para finalizar, de onde vem tanta vitalidade para se reinventar, se reerguer e se tornar tão presente em um momento em que a indústria fonográfica é tão efêmera?
Estar presente, porque se eu ficar deitada eu não vou conseguir fazer p* nenhuma. Eu tenho que levantar da cadeira, caminhar e ver que as coisas estão acontecendo. Não fingir que não está acontecendo nada, que estou maluca. As coisas estão na minha cara.