A considerar a evasiva de Ian McEwan ao lançar seu mais recente livro na última Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), de que “todo romance é sobre espionagem”, Serena não é. Serena é um romance sobre Serena, uma jovem matemática interessada em literatura que pouco leva e pouco é levada a sério como funcionária do serviço secreto britânico, o MI5.
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Narradora de suas próprias desventuras, Serena volta quatro décadas no tempo para relatar a missão para a qual foi enviada e “não voltou em segurança”. O jargão dos agentes secretos, aqui, é uma ironia de como um caso amoroso leva a protagonista a meter os pés pelas mãos no único trabalho de verdade que recebe em sua curta carreira na inteligência.
Em meio à Guerra Fria, a presença de mulheres é ainda novidade no bureau londrino, e o trabalho de Serena e suas colegas é o de secretárias de luxo. Isso muda quando, apontada como leitora atenta de romances, ela é apresentada ao projeto Tentação. Seu papel é dar face a uma fundação de fachada para financiar anonimamente um escritor afinado ideologicamente com o lado de cá da Cortina de Ferro. O objetivo é municiar a “guerra de ideias”, criando alternativas à produção intelectual sempre tão simpática ao ideário comunista.
São necessários apenas dois contos para Serena apaixonar-se por Tom Healy, o que comprometerá o disfarce dela e a carreira de ambos. O que seduz no romance, no entanto, não é o risco iminente de uma grande missão comprometida. Conforme atentados do IRA e conflitos em países como Líbia e Uganda vão sendo citados de forma aleatória e displicente, percebe-se que o maior trunfo do livro é justamente o ponto de vista singelo de sua protagonista. O olhar ingênuo e mesquinho de quem ignora o resto do mundo e se preocupa apenas em não perder mais um amor.
Um leitor atento da obra de McEwan _ dos cultuados Reparação e Na Praia _ pode perceber antes do tempo que Serena é um livro-truque. Há uma sacada narrativa que, a poucas páginas do final, abrilhanta e, logo mais, quase compromete um grande romance. À primeira vista, o final escolhido põe em dúvida a sinceridade de Serena. Em um passar de páginas, a apaixonada leitora pode ter sido apenas uma fria agente secreta. O erro foi ter ido além. Na ânsia de amarrar todas as pontas da história, o autor leva o leitor a acreditar que está diante da versão mais fiel possível da realidade. Lamentavelmente, McEwan ignora que o benefício da dúvida seria todo do leitor.
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