Aqueles que permaneceriam na indigência, o grupo conhece pelo nome. Ajuda com roupas, comida, banho, aulas e ouvidos para escutar histórias. Com quase uma década de serviços prestados às pessoas em situação de rua, desde fevereiro de 2003, o Centro Pop _ Porto Seguro, de Joinville, restabeleceu os laços familiares e sociais de 75 moradores de rua.

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A população sem teto, sem contato com a família e sem documentos pode contar com a assistência social do Centro Especializado para Pessoas em Situação de Rua, que terá uma sede própria em julho de 2015 e deverá atender a 50 pessoas diariamente, o dobro da capacidade atual.

A dependência química, seja do álcool ou de drogas ilícitas, é a grande vilã dessas histórias. Mas não são todos que têm algum vício, ressalva a assistente social do centro, Arlei Iuczsh. A profissional tenta descobrir por que eles escolheram sair de casa e procura mostrar os caminhos de volta.

– A rua, para muitos deles, é mais segura que a própria casa – justificou o coordenador do Centro, Jucélio Manoel Narciza.

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A violência é um dos motivos de ruptura dos laços familiares e sociais. Essas ligações são o alvo do trabalho de assistência social, que tenta restabelecer vínculos. Resgatar pessoas não significa forçá-las a sair da rua.

– Nós não as tiramos das ruas como podemos fazer com objetos. Eles têm que querer mudar a própria vida – explica o educador social Gilberto da Silva Costa.

Dos mais de 4 mil atendimentos no Centro Pop, chega a 494 o número de pessoas que retornaram às cidades de origem. Faz parte do serviço oferecer passagens, no caso de quem vive na rua, chegou em Joinville, mas deseja retornar. O centro realizou 79 acolhimentos em 2014. Dentre os acolhidos, apenas 8% eram mulheres. O número de resgatados não passa de 3%.

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– Para nós o número é o menos importante. Cada um deles é uma vitória – justifica Jucélio.

O centro restabelece laços de, em média, oito usuários do serviço a cada ano. Se hoje 156 pessoas têm cadastro ativo, a probabilidade de serem resgatados é de 5,12%. Duas ou três vezes por semana, Jucélio e Gilberto, mais conhecido como Giba, fazem rondas pela cidade para convidar os moradores das ruas de Joinville a conhecer o centro. Para os dois, esse é o primeiro passo para mudar a mentalidade e a vida dessas pessoas.

O homem do tubo

Quando entram na Kombi branca, o trabalho de rua começa. Jucélio vai na frente com o motorista Marcos Antônio Lisboa, o Marquinhos.

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Giba fica atrás e algumas vezes divide espaço com pessoas que se propõem a conhecer o Centro Pop. Entre uma rua e outra, o educador argumenta que algo acontece para que se concretize a escolha da rua como casa.

– Morte. Traição. Desemprego – lista Giba.

Bem ou mal aos olhos de fora, eles vivem naquilo que acreditam.

– Sou um cara muito certo. Não gosto de traição. E eu vi! – disseram dois olhos azuis que passeavam pelo passado.

O dono do olhar perdido em memórias já trabalhou oito anos em um banco. Foi gerente. Hoje, ajuda na lavação de carros em frente à sua casa, um tubo de cimento que fica na parte alta de um terreno baldio no bairro Itinga. Ele também guarda carros e limpa piscinas.

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Orlando do Tubo tem “sessenta anos e meio” e nasceu em Jaraguá do Sul. A dona da lavação, Andréia Lorenzetti, acompanha de perto a história do Homem do Tubo. Ela sabe que a família não quer fazer visitas, porque “parece que ele aprontou bastante”. Mas ele não esconde a vontade de rever a irmã.

– O problema dele é a cachaça. Quando está são, não para no quintal – assegurou ela.

O próprio Orlando admite que a bebida é um problema.

– Se eu estou bêbado não ganho nada. Fico xarope – reconheceu ele, que, entre uma risada e outra, se contradiz:

– Hoje de noite eu vou tomar meu vinho.

Andréia conta que seu vizinho já ficou três meses sem beber. Ele ajuda com produtos de limpeza e comida. Não aceita que Andréia recuse a retribuição. Afinal, ela lava as roupas dele, oferece comida e trabalho. Já fez um currículo para que ele tentasse um emprego.

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Deixou o banheiro dos fundos de casa à disposição dele. São três anos de convivência. Dois anos dentro do cilindro de concreto, que Andréia nem ousa conhecer de perto. Um colchão serve de apoio para vários objetos, dentre eles o cobertor, o cabo da enxada e a peixeira que seu Orlando não se intimida ao puxar.

Antes de ser o morador do tubo, Orlando viveu em um ponto de ônibus. O ex-gerente prefere ter “lugar para um só”, mesmo que não possa levar “as namoradas”. A vizinhança não aprova essas movimentações,

então, ele dá outro jeito. O tubo é tudo o que ele precisa para viver.

A porta da Kombi fecha e Marquinhos dá a partida para levar a equipe de volta ao Centro Pop. Jucélio, que já havia providenciado novos documentos para Orlando, buscou informações sobre como e quando o ex-bancário poderia se aposentar. Ele tem mais quatro anos e meio de espera.

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– Isso se ele sobreviver àquelas condições – lamenta o coordenador.

Longe da história de Orlando do Tubo, uma reflexão de Giba começa a fazer sentido:

– Se ele vive ali, é porque aquele local é o ambiente mais seguro que ele encontrou para viver.

Uma vida em resgate

Vazio. Esta é a sensação de quem já passou por estupro, maus-tratos, e falta de amor e resolveu sair de casa para viver no mundo e buscar consolo em todo tipo de droga. Em uma década de rua, ela ficou conhecida como Cruela. Depois do tratamento, passou a ser chamada de Pedrita. Sua única cicatriz das ruas está no pé. Levou uma facada. É o que ela chama de “sorte”.

– Para viver na rua tem que ser muito inteligente – afirmou Pedrita.

Sentada na sala do Centro Pop, ela contou como é habitar as calçadas. Dormir no “ortopiso, ortopedra, ortopapelão” não é fácil. “Médicos, professores de universidades e pessoas com dons inacreditáveis” eram alguns de seus companheiros de sina.

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– Cada um faz o seu corre e está tudo bem. À noite, todo mundo se reúne. Existe uma união. Não é uma união que se possa dizer que seja boa. Geralmente tem uma liderança. Acha um espaço para dormir e o líder manda – contou, lembrando dos tempos de Cruela.

Pedrita tem duas irmãs. O filho dela é cuidado pela mais velha das três. Mas por que viver na rua se existe uma família para a qual voltar?

– É para usar droga mesmo! Usar e beber livremente. Você tem a liberdade do uso – respondeu francamente.

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Na matemática do vício, o raciocínio não deixa a desejar na lógica. Nos seus cálculos, um litro de cachaça dura de 5 a 6 horas; crack dura 2 minutos. Seguindo esse ritmo, ela chegou a Balneário Barra do Sul e ultrapassou os limites da própria resistência. Joinville estava ficando muito perigosa. As pessoas andam 30 quilômetros por dia em busca de algo, seja droga, álcool ou um lugar para ficar.

Mas o corpo dela pediu socorro. A desnutrição e a desidratação dominaram o pouco da saúde que restou de dez anos de história na rua. Foi no Centro Pop que conseguiu dar os primeiros passos. Está há um ano e meio sem droga. Tem três meses de emprego com carteira assinada e um aluguel.

A aparência de Pedrita é outra. Com um pouco dos cabelos brancos à mostra e as unhas sem esmalte, mas limpas e bem lixadas, a mulher que deixou de ser Cruela se defendeu.

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– Estou indo para o trabalho agora. Não me arrumei. Mas sempre me cuido.

Pedrita briga com Cruela todos os dias. Com o cabelo curto e uma mecha presa no alto da cabeça, feito a personagem de Os Flintstones, o apelido pegou em um tratamento em Curitiba. Na rua, o nome dela era Cruela, a vilã dos 101 Dálmatas. Cruela e Pedrita são feitas da mesma braveza e valentia.

SERVIÇO

O quê: Centro Pop – Porto Seguro

Como: É um serviço da Secretaria de Assistência Social, da Prefeitura de Joinville, que ajuda pessoas em situação de rua. Não tem poder de polícia. A única arma com que conta é a proposta de uma mudança de vida. Disponibiliza um lanche frio e um banho diariamente. Doa roupas, sapatos e cobertores para usuários do serviço. Oferece aulas para adultos, cursos profissionalizantes.

Reúne pessoas para terapia de grupo com estagiários de psicologia, para grupos de convivência e para restabelecimento de vínculos.

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Horário: das 8 às 18 horas (sem fechar para almoço).

Onde: Rua Urussanga, 1.180, Bucarein.

Contato: (47) 3433-3341.