Em uma página da internet, o destino de um prédio centenário de Joinville é previsto em contagem regressiva. Até as 14 horas de terça-feira, 19 de dezembro, o moinho localizado ao lado do rio Cachoeira, na região central da cidade, pode ter um novo proprietário. A partir deste momento, será preparado para receber novas histórias, ou permanecer fechado, da mesma forma que nos últimos quatro anos, quando os grandes silos de moagem de trigo funcionaram pela última vez.

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O imóvel e todo o terreno de 52 mil metros quadrados no qual está localizado estão à venda em um leilão online, depois de passar quase dois anos sendo oferecido por uma imobiliária de Joinville. Quando foi construído, era o símbolo do progresso de uma cidade que ainda engatinhava na era da industrialização. Agora, é um exemplar em extinção em um país que enfrenta dificuldades para manter a memória viva em seus patrimônios.

O Moinho Joinville – nome que recebeu em 2002, quando passou por reestruturação e tornou-se a Bunge Alimentos – é um dos grandes imóveis históricos localizados na área urbana de Joinville. De grande empresa responsável pelo desenvolvimento da economia da cidade, tornou-se um prédio defasado pelas novas tecnologias e pelas novas leis de ordenamento territorial. Sua trajetória e características assemelham-se as de outros dois imóveis com diferentes situações de preservação e utilização: os prédios construídos nos anos 1930 para a Metalúrgica Wetzel, em uma área de cerca de 10 mil metros quadrados nas quais a empresa funcionou até 2007, quando inaugurou uma nova unidade no Distrito Industrial; e, o parque fabril desativado da Cervejaria Antarctica – que foi construído para a Cervejaria Tiede no fim do século retrasado – e utiliza cerca de oito mil metros quadrados no bairro América.

Enquanto o moinho está em leilão – sem lances até o fechamento desta edição –, a antiga metalúrgica tornou-se um centro universitário. Já a cervejaria, comprada pela Prefeitura de Joinville no ano 2000 para tornar-se um complexo cultural, há anos aguarda por promessas de projetos enquanto perde parte de seu patrimônio por falta de manutenção.

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Atracadouro para o passado

Em 1913, quando foi inaugurado, o Moinho Joinville era a mais alta edificação da cidade. Ainda sob o nome Moinho Boa Vista, era uma estrutura de cinco pavimentos – receberia mais um andar nos anos 1990 – que fazia os moradores da época abrirem a boca de surpresa quando visitavam as margens do rio Cachoeira para acompanhar sua construção, que durou três anos.

– Ele é uma joia rara, porque existem poucos exemplares parecidos no Brasil. Todos os outros foram demolidos, exceto um moinho no Rio de Janeiro e outro no Recife – explica o historiador Cristiano Abrantes, da Coordenação de Patrimônio Cultural de Joinville.

Ele refere-se ao Moinho Fluminense e ao Moinho Recife que, assim como o Moinho Joinville, foram construídos entre 1885 e 1914, incorporados ao patrimônio da Bunge Alimentos ao longo do século 20 e vendidos pela multinacional recentemente.

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Investimentos para transformar os locais

O moinho localizado no Porto Maravilha, região histórica do Rio de Janeiro, foi comprado em 2014 por duas empresas de engenharia que decidiram transformá-lo em um complexo residencial, empresarial e hoteleiro, em um investimento que deveria ultrapassar R$ 1 bilhão até a conclusão, prevista para 2018. No entanto, no início do ano as empresas entraram em contato com a Bunge para rescindir o contrato e, segundo o jornal O Globo, o imóvel virou alvo de vandalismo e abrigo para bandidos.

As construtoras que adquiriram o Moinho Recife no ano passado ainda não divulgaram suas intenções, mas um projeto semelhante ao carioca foi apresentado à prefeitura da capital pernambucana para o pedido de licenças. Ele foi comprado por R$ 10 milhões por meio de um leilão online, na mesma plataforma que agora anuncia o leilão do Moinho Joinville, por um lance inicial de R$ 13 milhões.

Quando encerrou suas atividades em Joinville, em 2013, a Bunge teria sinalizado interesse de torná-lo um complexo cultural mantido pela empresa, segundo informações da prefeitura na época. No entanto, em 2016, o imóvel foi colocado à venda a R$ 32 milhões em uma imobiliária da cidade. O proprietário da imobiliária, Manoel Candemil, afirma que, a partir da divulgação promovida nestes dois anos, foram feitos contatos com cerca de oito interessados, de construtoras, sindicatos e empresários de rede hoteleira e de instituições de ensino. Nenhum deles chegou nem mesmo a visitar o local, que tem uma grande área para novas construções, desde que estas estejam em harmonia com o prédio centenário.

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– O Moinho tem potencial para tornar-se um complexo multiuso, um parque temático, e foi apresentado ao mercado com estas possibilidades. Mas ele está em uma área desvalorizada, principalmente pelo rio Cachoeira. A conexão com o rio é muito forte e, enquanto ele for poluído, será difícil haver interessados nesta compra – avalia Manoel.

O Moinho Joinville ainda não é um patrimônio cultural da cidade. Ele entrou na lista de unidades de preservação municipal nos anos 1980, mas só em 2009 a Bunge recebeu a notificação de que começariam os estudos para o processo de tombamento. Desde então, a empresa conseguiu impugnar a decisão judicialmente e evitar registro no Inventário do Patrimônio Cultural de Joinville – o que não diminui as restrições previstas às Unidades de Interesse de Preservação (UIPs), de pedir autorização à Secult para qualquer alteração no imóvel.

No caso dos outros dois exemplares brasileiros do tipo de construção, apenas o Moinho Fluminense é patrimônio material municipal. O Moinho Recife, apesar de estar em uma área de patrimônio histórico municipal daquela cidade, não recebeu status para preservação.

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Preservação integral ou parcial

Quando um prédio, uma área ou um objeto é considerado portador de referências à identidade e à memória de uma comunidade, é passível de tornar-se um patrimônio cultural material e, por isso, receber proteção para que seja conservado e possa ser conhecido pelas futuras gerações. Assim, também recebem diferentes tipos de restrições que, aos olhos dos proprietários, parecem entraves para a manutenção e utilização dos imóveis.

Espalhados por Joinville, principalmente na área urbana, há 115 imóveis que, por lei, tem preservação integral ou parcial garantida. Entre eles, a Wetzel e a antiga cervejaria. Além desses, há 48 em processo de transformação em patrimônio cultural – caso do Moinho Joinville, que há anos tem seu registro como patrimônio cultural impugnado na Justiça – e mais de mil à espera de análise da sua relevância para a cidade.

Segundo a Constituição Federal de 1988, deve existir uma parceria entre o poder público e a comunidade para a promoção e preservação do patrimônio, na forma de mecanismos de incentivo e de instrumentos de proteção, ou na forma de editais de fomento e de isenção fiscal, como o Inventário do Patrimônio Cultural de Joinville (IPCJ). Este permaneceu em discussão, tramitando entre a Câmara de Vereadores e os órgãos da prefeitura, durante cinco anos, e teve um de seus mecanismos, a Lei 363, aprovado em 2011.

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A promessa era de, além de atualizar a forma de seleção dos imóveis transformados em patrimônio municipal, também oferecer mais benefícios do que sacrifícios aos proprietários, na forma de deduções e isenções tributárias. Ela seria instituída pela Lei Complementar 366, que nunca foi regulamentada, fazendo com que apenas parte das vantagens previstas possa ser utilizada.

Até o ano passado, os proprietários recebiam ofícios para serem entregues à Secretaria da Fazenda e terem direito à isenção ou redução do IPTU. Para 2018, a Secretaria de Cultura e Turismo (Secult) garante que a informação já estará presente no carnê do IPTU. Além disso, a coordenadora de patrimônio cultural da Secretaria, Valéria Ponick, afirma que, mesmo sem a regulamentação da Lei 366, já é possível obter isenção ou dedução sobre alguns tributos que referem-se transmissão de bens, licenciamento para reformas e prestação de serviços.