Desconstruir a busca pela felicidade absoluta. Não foi a primeira vez que um conferencista desembarcou no Fronteiras do Pensamento com essa missão. Em edições anteriores, palestrantes como o francês Edgar Morin instigaram a plateia com provocações do tipo “a poesia da vida é mais importante do que a felicidade”. Na noite da última quarta-feira, outro francês, dessa vez o escritor e filósofo Pascal Bruckner, mostrou que a poesia da vida pode ser, em si própria, a tão almejada felicidade.
Continua depois da publicidade
Confira entrevista com o escritor
Crítico do multiculturalismo, o escritor e filósofo fez um passeio pela história da humanidade apontando os marcos para a construção da ideia que se tem hoje sobre o termo. Seu principal algoz, para Bruckner, teria sido a religião.
– A felicidade era, para nossos ancestrais, um elemento do passado ou futuro, nunca do presente. Não se poderia ter prazer na terra porque estamos nela em função do pecado original, devemos trabalhar isso para alcançar nossa redenção – disse.
O medo do inferno era, portanto, um terror permanente. Era na morte que vinha o julgamento supremo, quando então se definia o caminho entre a plenitude ou condenação. Entre os fatores que levaram à transição desse estilo dogmático ao posterior hedonismo exacerbado, segundo Brukner, estariam a melhoria nas técnicas industriais, as descobertas médicas e avanços agrícolas. Esses avanços foram responsáveis por abrir o apetite de viver na humanidade e mudar o ponto de vista do homem acerca de si mesmo.
Continua depois da publicidade
Marcos políticos, econômicos e ideológicos que influenciaram os comportamentos das sociedades foram lembrados por Brukner. Mencionou o filósofo Francis Bancon para salientar que “o objetivo do homem não é sofrer, mas melhorar seu estado”, apotando que um dos grandes saltos de satisfação da humanidade foi a descoberta da aspirina e do ópio, que possibilitaram alívio para dores. As sociedades foram, aos poucos, saindo da miséria, da pobreza, da pré-história cultural.
Outra grande revolução na maneira como os humanos passaram a se relacionar com a autossatisfação foi a criação de mecanismos de crédito para escoar a produção. Nos anos 60, mais importante do que produzir, era consumir:
– O fato revolucionou as relações. Antes, quando se queria comprar algo, havia o regime da espera. Comprar em 10, 15, 20 anos um objeto de sonho. Isso consagrava o orgulho social. Mostrava que éramos felizes. Os sistemas de crédito, após a II Guerra, transformou isso. Como diziam os bancos da França: compre onde quiser, como quiser, o objeto de sua cobiça estará na sua mão. As gerações que conheceram o crédito viram o nascimento da publicidade. Não apenas para fomentar o desejo daquilo que não temos, mas para acelerar o consumo.
Para quem persistiu com dúvida sobre a receita da felicidade, a sua maneira filosófica, Bruckner deu seu recado:
Continua depois da publicidade
– Tudo isso para dizer que a felicidade é algo que nos acontece (…). Por poucas horas, dias, a felicidade é algo que nos chega e nos inunda, deixando em estado de grande nostalgia e no retorno da sua volta. Deixemos ao acaso o cuidado de organizar os nossos momentos de felicidade, à nossa inteligência a capacidade de reconhecer quando ela chega e à nossa prudência que evite os momentos de infelicidade.
Trechos da palestra de Pascal Bruckner, realizada na quarta-feira, 22 de outubro:
Barulho
“A felicidade construtivista seria como uma casa que construímos ao longo da vida. Essa é uma ideia ingênua, como se nós fôssemos os únicos capazes de influenciar na nossa própria felicidade. Infelizmente, a vida é muito mais caótica. Algo de muito profundo. Eu reconheci minha felicidade pelo barulho que ela fez ao sair.”
Encenação
“Parece que nós só somos felizes na inconsciência de sê-lo. Nos Estados Unidos, quando acontece alguma coisa boa, as pessoas vêm e dizem: “ah, você deve estar tão feliz!”. Isso te obriga a ser o ator da sua própria felicidade. Assim, acabamos desempenhando uma farsa. Quando um amigo nos avalia positivamente nos sentimos avaliados e nos sentimos no meio dos eleitos. No dia seguinte, ocorre o contrário. Nos sentimos tristes e queremos nos esconder do olhar crítico do outro.”
Religião
“Os filósofos do iluminismo escocês inverteram a felicidade. No século XIV, estávamos na terra para desfrutar. Essa inversão teve uma consequência sobre a qual ainda vivemos. A deslegitimização da felicidade. O gozo deveria se tornar a regra, não a exceção. Por causa disso, podemos julgar a religião de forma severa. Ela é a responsável por esse ponto de vista invertido.”
Continua depois da publicidade
Políticas
“Nos séculos XIX e XX, o direito à felicidade fez parte dos programas de partidos de esquerda, junto à semana de 40 horas de trabalho e ao direito a férias. Isso deixou as classes dirigentes horrorizadas. Soava terrível a ideia de ter os trabalhadores nas praias e montanhas, lugares antes reservados apenas à elite.”
Corpo sadio
“A saúde é o silêncio dos órgãos. Essa é uma verdade filosófica que representa não se preocupar em demasia com seu corpo. Mas sim, tê-lo como um parceiro que nos guia através dos anos pela caminhada da vida. Mas isso é uma verdade ideal e inacessível. Como se curar dessa doença que é a vida?”
Individualismo
“A exploração do mercado da felicidade fez com que ela se tornasse não apenas mais direito, mas um dever das sociedades capitalistas. A coletividade não tem mais direito de ditar suas condições à pessoa privada. Entre minha felicidade e eu não tem nada mais. Não há nenhum obstáculo para ser feliz. Por isso a culpa da ausência de felicidade é toda minha.”
A granel
“Nosso dever de felicidade é fundado sobre uma ilusão. Anexamos a ela a grande promessa da existência. Pode ser objeto de filosofia, terapia, ideologias. Podemos encomendá-la como encomendamos um prato no restaurante. Temos uma visão consumista da felicidade.”
Continua depois da publicidade
O que é … (essa tal a felicidade)
“É esse parêntese de despreocupação onde deixo longe todos esses pequenos probleminhas da vida, relevo os diferentes problemas que me acometem, esquecendo o que diz a ciência, de que somos obrigados a ser infalíveis.”