Não havia afegãos entre os sequestradores que perpetraram os ataques terroristas a alvos em Nova York e Washington no dia 11 de setembro de 2001. Todos os 19 sequestradores dos quatro aviões de passageiros que atingiram o World Trade Center e o Pentágono – o último caiu na Pensilvânia – eram árabes. Quinze eram sauditas e formavam a infantaria do bando, destinada a dar corpo à operação.
Continua depois da publicidade
Entre os cérebros, que haviam treinado pilotagem e assumido o controle dos voos, um era egípcio, outro, libanês, um terceiro, iemenita, e o último, dos Emirados Árabes Unidos. Dos três principais arquitetos do plano, Osama bin Laden era saudita, Ayman al-Zawahiri, egípcio, e Khaled Sheikh Mohammed, kuwaitiano de origem paquistanesa. Esses dados costumam ser invocados em favor da célebre observação do embaixador Richard Holbrooke (1941 – 2010) a respeito da guerra dos Estados Unidos no Afeganistão: “Nós devemos estar lutando contra o inimigo errado no país errado”.
O dito de Holbrooke, figura chave da diplomacia americana dos anos Clinton e Obama, serve de epígrafe ao livro O Inimigo Errado (The Wrong Enemy, em inglês), da jornalista britânica Carlotta Gall. Filha do repórter de TV Sandy Gall, que havia coberto a invasão soviética do Afeganistão nos anos 1980, Carlotta chegou ao país pouco depois do 11 de Setembro como enviada do jornal The New York Times. Menos de dois meses depois, esteve entre os primeiros repórteres a alcançar Mazar-e-Sharif, grande cidade do norte que fora controlada por cinco anos pelo Talibã e acabara de cair nas mãos dos guerrilheiros oposicionistas da Aliança do Norte, apoiados pelos EUA. Conhecedora da região – trabalhou numa ONG criada por seu pai em Cabul e atuou como repórter na guerra da Chechênia, que lhe inspirou um livro -, Carlotta permaneceu por 13 anos entre o Afeganistão e o Paquistão. Sua densa obra é a mais rigorosa contabilidade já produzida por um jornalista ocidental a respeito dos erros e acertos da presença ocidental na Ásia Central. Em tempo: pelo levantamento de Carlotta, os erros ganham de goleada.
Neste sábado, os afegãos vão às urnas para eleger um presidente pela segunda vez em sua história. O pleito foi cercado das mesmas ameaças do Talibã lançadas há cinco anos contra os que compareceram às seções eleitorais para participar da eleição vencida pelo atual presidente, Hamid Karzai: dedos sujos de tinta (evidência do exercício do direito de voto num país de analfabetos) sujeitariam os que os ostentassem à execução sumária. Desta vez, porém, a situação é ainda mais ameaçadora. Sabe-se que, seja quem for o vencedor, o futuro do país será marcado pela retirada das forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), prevista para o final do ano. Os talibãs serão os principais beneficiários desse episódio. Para Carlotta, a história da intervenção capitaneada pelos americanos é crivada de “erros mortais e oportunidades perdidas”. Para ficar em um único exemplo, ela cita o bombardeio ocidental de uma festa de casamento em Kakrak, que resultou em 54 mortos e centenas de feridos: “Esses aldeões viviam vidas simples. Suas casas não tinham mobília. Todos comiam e dormiam no chão. As mulheres criavam vacas e galinhas nos quintais e cozinhavam em fogões ao ar livre abastecidos por gordura animal. As crianças circulavam descalças e brincavam na poeira. Essas pessoas não eram da Al-Qaeda. Elas não estavam nem remotamente conectadas ao terrorismo internacional. Elas não eram nem mesmo talibãs. Elas não eram hostis a nós, jornalistas ocidentais, mesmo depois de tão indizíveis assassinatos. Elas respondiam a nossas perguntas e pacientemente nos conduziam em meio às ruínas. Isso me partia o coração”.
Continua depois da publicidade
Outro dos erros cruciais apontados por Carlotta diz respeito à política americana para o Paquistão. Ela fornece evidências concretas, baseadas em depoimentos de testemunhas de primeira mão, de que o serviço secreto militar paquistanês, o ISI, não apenas sabia do paradeiro de Bin Laden em Abbottabad como o mantinha sob vigilância. O mais grave, porém, é seu prognóstico para o futuro. “Os Estados Unidos já pagaram pesadamente nesta guerra, em sangue, dinheiro e prestígio, ainda que não esteja em risco de entrar em colapso como a União Soviética depois da guerra, como líderes da Al-Qaeda frequentemente imaginam que irá acontecer, e ainda há muito trabalho a fazer para colocar o Afeganistão e o Paquistão em melhor situação ou ser responsável por ainda mais sangue e destruição”.