*Por Gina Kolata
OMAHA, Nebraska – Todas as manhãs, às cinco e meia, o dr. André Kalil faz um café expresso duplo, corre dez quilômetros, faz mais um expresso duplo para ele e outro para a esposa, e segue para seu escritório no Centro Médico da Universidade de Nebraska, onde um dilúvio espera por ele.
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Ligações telefônicas insistentes e e-mails se acumulam a cada dia. Os pacientes e seus médicos estão clamando por tratamentos não testados contra o coronavírus, incentivados pelo presidente Donald Trump, que disse que "não podemos esperar" por estudos rigorosos dos medicamentos de combate à malária – cloroquina e hidroxicloroquina – e que pacientes doentes devem ter acesso imediato a medicamentos experimentais.
Kalil, de 54 anos, é um dos principais pesquisadores do estudo clínico do governo federal de medicamentos que podem combater o coronavírus, a começar pelo remdesivir, um medicamento antiviral. Os primeiros resultados estarão prontos em algumas semanas.
Kalil, que tem décadas de experiência com questões sobre o uso – e o mau uso – de medicamentos experimentais, raramente ficou mais frustrado do que agora. Ele viu o que acontece quando o desespero conduz as decisões de tratamento. "Muitos medicamentos que acreditávamos que eram fantásticos acabaram matando pessoas. É tão difícil continuar explicando isso", disse o médico em entrevista.
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Kalil é assombrado pelas lembranças do surto de ebola que assolou a África de 2014 a 2016. Naquela ocasião, os médicos também disseram que não podiam esperar por evidências científicas, e medicamentos não testados foram dados aos pacientes com ebola por médicos otimistas com intenções nobres. No longo prazo, nenhum dos medicamentos foi aprovado nos Estados Unidos para o tratamento da doença.
Hoje, a esperança se concentra na cloroquina e na hidroxicloroquina. Esses medicamentos foram testados em laboratório contra muitos vírus: o da síndrome respiratória aguda grave e o da síndrome respiratória do Oriente Médio – ambas causadas por coronavírus –, além do HIV, da dengue, do ebola, da chikungunya e da influenza. Mas, mesmo quando eles pareciam funcionar, o que teve sucesso no tubo de ensaio não teve sucesso na vida real, afirmou Kalil.
Na verdade, sabe-se que os medicamentos de combate à malária não funcionam contra qualquer doença viral, incluindo o ebola. (A malária é causada por um parasita, não por um vírus.) E os medicamentos têm efeitos colaterais, incluindo danos ao fígado e à medula óssea, além de distúrbios do ritmo cardíaco, que podem ser fatais em idosos e jovens com sérios problemas médicos.
E, segundo Kalil, ainda mais grave é a promoção do antibiótico azitromicina em combinação com os medicamentos de combate à malária para tratar pacientes com a Covid-19. A azitromicina também pode causar sérios problemas ao ritmo cardíaco, e a combinação de medicamentos nunca foi testada para se saber se é segura em humanos.
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Isso não quer dizer que os medicamentos não ajudem os pacientes que contraem o coronavírus, apenas que tal fato é desconhecido. "Isso tem muita carga emocional. É o déjà vu do ebola", comentou o médico.
Kalil, especialista em doenças infecciosas e terapia intensiva, é um dos principais pesquisadores de um experimento federal incomum que pode moldar o curso da pandemia de coronavírus.

Em todas as superfícies de seu consultório no Centro Médico da Universidade de Nebraska há pilhas de papéis e pastas – atualmente, não há tempo para limpar. Seu almoço, às 15h, em uma tarde recente, se resumiu a um enroladinho de peru e uma garrafa de água.
Kalil é volúvel, magro e cheio de energia, um patriota descarado cuja família emigrou do Brasil décadas atrás. Ele pode ser aguerrido e já peitou cientistas de renome ao ver que seus tratamentos não podiam ser justificados por evidências científicas.
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Já participou de 22 maratonas e sabe que agora está na corrida mais importante de todas. Como os pacientes e o presidente exigem tratamentos, ele quer que as pessoas entendam que os testes estão sendo realizados o mais rápido possível.
"Correndo o risco de parecer clichê, Kalil é o tipo de pessoa que eleva uma equipe por meio de seu comportamento e sua abordagem da pesquisa", disse o dr. John Lowe, vice-chanceler assistente do centro médico.
Não há vacina nem tratamento para a Covid-19, a doença respiratória causada pelo coronavírus. Na quinta-feira, o vírus já tinha infectado 1,5 milhão de pessoas em todo o mundo, e pelo menos 430 mil somente nos Estados Unidos, onde já matou mais de 14.500 pessoas.
O remdesivir, fabricado pela Gilead, foi escolhido para ser o primeiro tratamento avaliado nesse esforço federal depois de uma análise cuidadosa, feita por pesquisadores, de quais medicamentos poderiam ser eficazes. Foi projetado para ser um antiviral de amplo espectro que interrompe a síntese de material genético em uma variedade de vírus.
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Estudos em laboratório e em animais sugeriram que o remdesivir pode ser eficaz contra os coronavírus, e estudos de segurança já haviam sido realizados em animais. O medicamento também foi testado em animais infectados com a Mers e a Sars, ambas causadas por coronavírus.
"Não sabemos se o remdesivir entrará nos pulmões em uma concentração alta o suficiente para matar o vírus. E não sabemos se ele causará efeitos colaterais", afirmou Kalil sobre seu possível uso no tratamento da Covid-19. É até possível que o medicamento acelere a morte de pacientes. "E é por isso que precisamos de um estudo controlado randomizado", continuou.
Embora o remdesivir ainda não tenha sido aprovado para o tratamento de doença alguma, a Gilead forneceu o medicamento aos pacientes com Covid-19 sob exceções legais de "uso compassivo". Todavia, a demanda aumentou tanto que a empresa anunciou, no mês passado, que deixaria de distribuir o antiviral.
"Eu jamais ministraria esse ou qualquer outro medicamento experimental, sem rótulo, aos meus pacientes. Não há nada de compassivo no uso compassivo. Você está tratando emoções", prosseguiu Kalil.
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O problema não é somente o fato de que um medicamento experimental possa não funcionar ou colocar em risco os pacientes. É também que, se um medicamento é distribuído para pacientes em todos os lugares, ninguém jamais saberá se ele funciona.
Se um paciente com Covid-19 tomar remdesivir ou cloroquina e morrer, o medicamento falhou? O paciente já estava muito debilitado? O medicamento realmente acelerou a morte?
Se o paciente sobreviver, foi por causa do medicamento? Apesar dele? Sem um estudo controlado, não há uma boa resposta nem uma maneira de comparar pacientes depois que o medicamento é distribuído rotineiramente.
O experimento que Kalil lidera não é o único que está avaliando o remdesivir contra o coronavírus. Mas é o único feito com rigor para mostrar se esse ou outros medicamentos funcionam na população dos Estados Unidos.
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A pesquisa começou em fevereiro com três pacientes que foram infectados a bordo do navio Diamond Princess e foram levados de avião para o Centro Médico da Universidade de Nebraska.
Atualmente, há cerca de 400 pacientes registrados em vários locais, e esse número é suficiente para que o teste forneça uma análise preliminar, já em andamento, que determinará se o experimento com o remdesivir deve continuar.
No ensaio clínico habitual, um medicamento é testado contra uma substância de controle – um placebo ou um medicamento padrão de tratamento – por um período determinado. Os pesquisadores não têm permissão para ver os dados.
Quando o experimento termina e os dados são revelados, os pesquisadores decidem se o novo medicamento é útil. Caso contrário, o processo deve recomeçar com um medicamento diferente. Os experimentos podem levar anos.
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Kalil, no entanto, está executando um teste adaptativo. Os pesquisadores começam comparando um medicamento experimental – nesse caso, o remdesivir – com um placebo. Depois de um período comparativamente curto, observam os dados.
Se os pacientes com o remdesivir estiverem se saindo melhor que aqueles que receberam o placebo, o estudo passará para uma segunda fase, na qual outro medicamento será testado contra o remdesivir, que se tornará o controle do estudo.
O objetivo é encontrar algo que mostre alguma eficácia de forma rápida, e não há um ponto de parada específico.
Se um medicamento baixasse a taxa de mortalidade a zero, é claro que o teste terminaria abruptamente e esse medicamento se tornaria o padrão de atendimento. Porém, se um medicamento reduzir a taxa pela metade, a questão fica ainda mais complicada. "Isso é bom o suficiente?", Kalil se perguntou.
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Ele se recusou a dizer quais medicamentos estão na fila para testes depois do remdesivir por temer que isso possa desencadear outra onda de demanda por medicamentos não comprovados.
Além de criticar a demanda pelo medicamento sob uso compassivo, Kalil também lamentou a publicação de estudos de caso, em prestigiadas revistas médicas, feitos com pacientes isolados que usaram um medicamento não testado.
"A publicação de um relato de caso isolado de um medicamento experimental como artigo original em uma revista de alto impacto durante um surto é semelhante a uma notícia sensacionalista. Devemos fazer melhor do que isso para salvar vidas durante uma pandemia" completou o pesquisador.
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