O mundo do empreendedorismo para pessoas negras é muito mais desafiador. As desigualdades e violências que nos atravessam cotidianamente contribuem e, por muitas vezes, definem a trajetória destes empresários e seus negócios. São os empreendedores negros que ganham menos, mesmo correspondendo a 52% dos donos de negócios no país. Cerca de 77,6% destes recebem até dois salários-mínimos por mês.
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A proporção de empreendedores pretos e pardos em atividades mais tradicionais e simples – que demandam menos qualificação e geram menor retorno financeiro – é superior à de brancos donos de pequenos negócios.
Quando o recorte de dados passa pelo gênero, mostra que a participação de mulheres pretas no empreendedorismo é menor do que em comparação com as demais raças. Entre negros, a proporção de mulheres é de 32,2%, contra 35,4% entre os brancos e 37,5% entre os donos de negócios de outras raças-cor (“amarela” / indígena).
Os dados são do levantamento feito pelo Sebrae com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do terceiro trimestre de 2023.
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Apesar do cenário de falta de incentivos e oportunidades, negócios negros de sucesso têm florescido e resistido em Santa Catarina. Para mostrar e celebrar algumas dessas conquistas os repórteres Edsoul Amaral, Carol Fernandes e Cristiano Gomes produziram estas reportagens especiais, que fecham a semana da consciência negra na NSC.
A seguir, você conhece a história de pessoas que sabem que os negócios delas são assim como suas peles: verdadeiras potências.
A potência dos empreendedores negros em SC se pauta na força da coletividade
A força das mulheres negras empreendedoras
Neste mês da Consciência Negra vamos falar da potência do aquilombamento, que é a reconexão com a ancestralidade, a construção de espaços coletivos de acolhimento. Uma potência que hoje impulsiona mulheres a empreender e mudar realidades.
– A todo momento estamos empreendendo desde a manhã até a noite estamos pensando em soluções que não dizem só da gente – diz Mathizy Pinheiro, psicóloga e diretora-geral do Instituto É da Nossa Cor.
Para ser uma empreendedora tem que ter estratégia. Para as mulheres negras, que entram nesse mundo sobretudo por necessidade e sobrevivência e que neste processo enfrentam desafios que limitam atuações e rendas, uma tática ancestral é o que as coloca de pé todos os dias para continuar na luta.
– O que diferencia, é que temos o poder do aquilombamento. Isso é uma coisa que fortalece muita gente estamos um cuidando do outro, um dando apoio para o outro, e crescendo um com o outro – conta Aldelice Braga.
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Essas duas mulheres estão ligadas pela negritude, pelo empreendedorismo, por ancestralidade e pela consciência de que seus negócios são potências, assim como suas peles. Aldelice mudou de rota e empreendeu pela necessidade:
– Sempre trabalhei com dança, com hidroginástica, atividade física em geral. Em 2009, tive uma lesão do quadril e o médico me proibiu de dançar. Pra mim foi a gota d’água. Conversando com o meu ex-companheiro, ele me disse: “Você está sempre mexendo com roupa, fazendo coisas, inventando, por que você não faz um curso de corte e costura?”. Aí, eu pensei: Opa!
Nesse processo, Aldelice teve um reencontro com os antepassados:
– Veio um filme na minha cabeça, vem da minha mãe quando eu pequena, eu fazendo as minhas roupas, fazendo as roupas dos meus irmãos, os meus tios fazendo roupas e eu do lado dos meus tios costurando – lembra.
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Já na vida da Mathizy, o empreendedorismo chegou pra enfrentar antigos pesadelos:
– Quando cheguei na comunidade do Pastinho, fui recebida por crianças. E dentro das conversas, uma vez eu ouvi elas falando que se elas pudessem escolher, elas seriam loiras de olhos azuis, ao invés de negras. Ouvir aquilo mexeu muito comigo, e me lembrou principalmente quando era criança. Teve vários momentos que eu pensei isso – recorda.
Não ficar indiferente àquela realidade fez as coisas mudarem.
– Criança não adianta ficar falando muito, tem que mostrar. A gente começou com os instrumentos, a fazer algumas atividades, cantando cantos afirmativos, entre eles o canto da capoeira que é “É da nossa cor”.
Na dança das agulhas, tecidos e cores, a Aldelice decidiu criar uma marca. Ela cria e recria peças exclusivas:
– Quando chegam nas minhas roupas, dizem: “Nossa, que coisa linda. É você mesmo que faz?”. Digo, sim, sou eu mesma que faço. Aí, a pessoa fica impressionada com a qualidade, com acabamento. Poxa, a gente também tem bom acabamento, tem qualidade, a gente também estuda, também pensa! – comenta.
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E pensando, quis aquilombar. Ajudou a fundar a feira afro artesanal de Florianópolis – que reúne expositores, em sua maioria mulheres negras. A ideia de unir todo mundo também faz parte do DNA do “É da nossa cor”.
– Começou como uma iniciativa social, se transformou no projeto e hoje a gente construiu juridicamente como instituto. A gente não está trabalhando necessariamente com racismo, porque ele não é algo nosso, não é um problema nosso, é uma violência que nos atravessa. A gente está trabalhando com a nossa cultura, falando sobre quem a gente é – explica Mathizy.
Daniela Cristina Seara de Oliveira, que é mãe e voluntária do instituto, acompanha esse processo de perto:
– Foi muito importante passar pelo projeto, até para ensinar para os meus filhos o valor que a gente negro tem, que a gente é igual a qualquer outra pessoa de outra cor – pondera Daniela.
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Sonhos e reflexões
Sabendo que fazem parte de um movimento que não começa e nem termina com elas, os desejos para os negócios são amplos:
– O meu sonho é um dia a gente estar no shopping, com uma rede de mulheres pretas aqui no sul. Na Bahia já tem bastante, aqui a gente não conseguiu, mas vamos conseguir – idealiza Aldelice.
– Desejo que as crianças que um dia fizeram parte do instituto criem coisas totalmente diferentes e importantes pra elas. Desejo que a gente relembre a importância de olhar para isso todos os dias, a nossa responsabilidade diante do que a gente tem construído sobre o que é ser negro, que discurso a gente tem construído. Será que está pautado no racismo? Será que é só isso que diz da gente? Ou será que a gente não pode falar outras coisas sobre nós? – reflete Mathizy.
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