Elza Soares vê anjos. "Ela me chamou um dia quando estava indo embora, já dentro do carro, de porta fechada, e falou assim pela janela: 'Menino, você pode não acreditar no que eu vou falar, mas, desde a primeira vez em que encontrei você, eu vejo um anjo sobre a sua cabeça. É uma mulher mais velha, de cabelos brancos, lenço na cabeça. Não sei o que é, mas me parece um anjo.'"

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Quem conta a história é Pedro Loureiro, hoje em dia empresário e responsável por diversos aspectos da carreira da artista. Pedro afirma que a descrição feita por Elza batia com a aparência de sua mãe, que havia falecido vítima de um câncer poucos meses antes do primeiro encontro entre os dois. A declaração feita pela cantora mexeu com Pedro de tal maneira que ele se afastou da amizade que aos poucos ia se formando ali. Mas Elza insistiu: alguns meses depois, ela convidou o então administrador para um almoço em sua casa e voltou a falar da tal visão. "Sabe aquele anjo de que eu te falei um dia?", perguntou. "Eu sonhei com ela algumas vezes, e no sonho ela aponta para você e me diz que você tem algo pra me dar. Que você vai transformar minha vida, e eu vou transformar a sua."

O ano era 2014, e Elza Soares – dona de uma das vozes mais marcantes da música brasileira – passava por um período complicado, tanto pessoal quanto profissionalmente. Para o grande público, estava "sumida": seu último lançamento havia sido uma coletânea de 50 anos de carreira, Deixa a Nega Gingar, em 2009. Foi a partir de outubro de 2015 (depois da perda do filho Gilson, morto aos 59 anos em consequência de complicações de uma infecção urinária), com o lançamento de A Mulher do Fim do Mundo, que Elza renasceu musicalmente: o disco, produzido por Guilherme Kastrup, mistura gêneros como o samba, o rap e a música eletrônica, e é o primeiro de inéditas da artista, com letras que falam de feminismo, violência doméstica, negritude – todos assuntos de que Elza entende muito bem. O trabalho a levou ao palco do Rock In Rio pela primeira vez, ganhou o Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira e foi eleito pelo The New York Times como um dos dez melhores do ano, ao lado de obras de ícones como David Bowie e Beyoncé.

Quando essa revolução começou, Elza já trabalhava com Pedro, e com outros integrantes de uma equipe que foi aos poucos construindo em torno de si. Em 2018 e 2019, ela lançaria ainda os igualmente aclamados Deus é Mulher e Planeta Fome – este último inspira o show que chega a Florianópolis no dia 7 de março, para apresentação única no Centro de Cultura e Eventos da UFSC. O sucesso não foi por acaso: é resultado de um projeto, um plano de longo prazo, pensado e executado para, nas palavras de Pedro Loureiro, voltar a celebrar uma artista que, antes de 2015, "andava muito sub-homenageada".

Elza sabia o que estava fazendo quando ouviu o conselho daquele anjo. Inicialmente, Pedro foi contratado sob o burocrático título de Diretor de Marketing e Planejamento Estratégico, mas em certo ponto a cantora decidiu que queria o colega como empresário. Pedro não aceitou. Porém, na primeira vez em que participou do programa de entrevistas Conversa com Bial, da Globo, Elza simplesmente apontou para Pedro Loureiro e o também parceiro de trabalho Juliano Almeida, que estavam na plateia, e os apresentou em rede nacional como "seus novos empresários". "E naquele momento eu me tornei oficialmente empresário dela", ri Pedro. Elza não é de se deixar impedir quando decide alguma coisa.

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A segurança e a determinação, no caso de Elza Soares, são mais que traços de personalidade: são escudos essenciais a uma mulher que viveu a vida que ela viveu. Os detalhes são conhecidos, e já foram recontados em diversas reportagens e biografias – além de narrados, na noite da última segunda-feira (24), no desfile da Mocidade Independente de Padre Miguel, escola de samba que homenageou a cantora na Sapucaí: ainda menina, Elza casou-se obrigada pelo pai, aos 13 anos de idade. Pobre, perdeu dois filhos; um deles recém-nascido, o outro para a fome. Sofreu com violência doméstica; enviuvou aos 21 anos. Trabalhou como empregada doméstica, como lavadeira. Viveu um grande – e conturbado – amor com o jogador de futebol Mané Garrincha, que ainda era casado com outra mulher quando os dois se tornaram amantes. Teve um filho com ele, morto aos 9 anos em um acidente de carro. Publicou a autobiografia Minha Vida Com Mané, editada em 1969 e hoje raríssima, fora de catálogo há mais de 40 anos.

Quando conta sobre o tal almoço que a artista fez para recebê-lo em casa no dia em que resolveu falar sobre o sonho com o anjo, Pedro Loureiro narra que Elza é "muito protocolar" para receber convidados: oferece entrada, prato principal, sobremesa, café, todos os talheres correspondentes, como manda a etiqueta. E o comentário que a cantora faz sobre essa habilidade é revelador: "Eu trabalhei muito tempo em casa de família", argumenta. "Aprendi como receber bem." Elza não nega e não esquece nada de seu passado. "Ela pegou os tijolos de tudo o que já viveu e construiu um castelo no qual se fez rainha", define Pedro.

Determinada e senhora de si, Elza não deixa que essa confiança feche sua mente para outros pontos de vista, sugestões e aprendizados
Determinada e senhora de si, Elza não deixa que essa confiança feche sua mente para outros pontos de vista, sugestões e aprendizados (Foto: Patricia Lino)

Elza não deixa, porém, que essa confiança feche sua mente para outros pontos de vista, sugestões e aprendizados. "Apesar de ser muito focada, ela também me dá muita liberdade para trabalhar", conta Ricardo Muralha, um dos produtores de Planeta Fome e co-produtor de A Mulher e a Máquina, espetáculo que inaugurou as experimentações da cantora com a música eletrônica. Muralha é responsável, no palco, pelos sintetizadores nos atuais shows de Elza. "Ela fala "Mumu, eu quero é porrada. Faz o que você quiser aí'. Claro, tem coisas que ela aponta, 'não gostei disso', e aí eu vou lá e repenso. Mas ela sabe que nessa vida a gente precisa trocar: ela tem as vivências dela, que usa para ensinar os outros, mas também sabe ouvir e aprender. Ela está sempre se atualizando."

O empresário Pedro Loureiro também relata um clima de parceria na construção dos conceitos dos projetos de Elza. "Nada da estratégia vem de mim – vem dela", afirma. "Eu só observo: o que a Elza quer falar? O que ela quer passar para frente neste momento?" O álbum Planeta Fome, por exemplo, a princípio se chamaria Nervosa: a veterana chegou a compor todo um repertório para o disco, antes de descartar tudo e recomeçar. Foi a própria Elza quem resgatou a história acontecida no programa Calouros em Desfile, de Ary Barroso, ao pensar em um novo título para o trabalho. Elza ainda era aspirante a cantora quando foi ao programa da Rádio Tupi, e, vestida em trajes pobres, ouviu do apresentador a pergunta: "De que planeta você veio, minha filha?". De Que Planeta Você Veio? chegou a ser o nome provisório da nova obra, mas Pedro argumentou que essa frase havia saído da boca de Ary Barroso – e que o público gostaria de ouvir não a pergunta do apresentador, mas sim a resposta de Elza: "Eu vim do planeta fome."

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Talvez a disposição para viver em constante aprendizado seja um dos segredos da jovialidade de Elza Soares. "A cabeça da Elza está no corpo errado – ou melhor, o corpo da Elza não acompanha mais a cabeça dela", comenta Vanessa Soares, neta mais velha da artista. "Você consegue perceber isso pelo público dela, que hoje é muito jovem." Vanessa é filha de Dilma Soares, e sempre teve uma relação muito próxima com a avó. "Ela gosta de falar que eu não sou neta dela, sou filha", ela ri. "Diz que, quando eu nasci, ela pegou pra ela."

Vanessa trabalha com Elza, organizando a vida pessoal da cantora, da administração da casa à marcação de consultas médicas. Conhecendo esse lado mais íntimo da artista, Vanessa faz questão de ressaltar a humildade da avó. "Uma das meninas que trabalha lá em casa um dia me disse que, quando descobriu que precisaria cozinhar para Elza Soares, ficou horrorizada", ela conta, rindo. "E depois descobriu que o prato favorito da Elza é arroz, feijão e ovo frito! Elza ama quando a gente faz um macarrãozinho com ovo mexido e azeitona, e só. Ela é humilde em tudo."

Mas talvez essa não seja Elza, a grande baluarte da música brasileira, que se transforma em ícone ao pisar no palco: "Dentro de casa, ela é a Conceição", diz Vanessa, referindo-se ao nome do meio da avó. "Ele é pequenininha, muito quieta, na dela. Quase não vê televisão. Fica escutando música de fone de ouvido, estudando, pesquisando. Ela descobre muitas músicas novas, principalmente em época de produção de disco novo. E no palco ela é um monstro. É uma transformação incrível."

Quem também sente conhecer (ou ter conhecido) "duas Elzas" é o músico Ricardo Muralha – ao se referir mais especificamente às duas cirurgias na coluna que a cantora precisou fazer após um tombo no palco e um acidente de carro que fizeram com que ela passasse a sentir muitas dores. "A Elza antes desse problema era uma espoleta, não parava, dançava no palco, ia pra rua fazer coisas o tempo todo", ele relata. "Eu não vou dizer que ela não se incomoda com isso, claro, mas acho que ela encara de uma maneira bem positiva. E ela sabe muito bem preservar a própria energia para dar tudo de si no momento necessário." Vanessa completa: "Ela faz fisioterapia, faz pilates, caminha dentro de casa, pega sol todos os dias de manhã… Mas ela ainda está aprendendo a conviver melhor com essa falta de mobilidade."

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Várias vezes os entrevistados esbarraram em alguma afirmação sobre a idade de Elza – e rapidamente se interromperam, com frases como "Elza me mata se eu sair por aí falando sobre a idade dela; ela odeia esse assunto". Mas o fato é que o tópico é curioso justamente por uma antiga confusão: "Ela tem três registros diferentes, e um dos registros tem sete anos de diferença pro outro!", conta Vanessa. "A certidão de nascimento dela tem uma data, o CPF tem outro…" Por essas e outras, Elza gosta de dizer que "não tem idade", e sim "tempo".

Ela é vaidosa: segundo o maquiador e cabeleireiro Wesley Pachu, que cuida da aparência de Elza Soares há oito anos, a cantora não sai de casa sem maquiagem. "Ela deixa nas minhas mãos o que usar, qual cabelo usar", ele diz; explicando que, por sua vez, faz a decisão com base nas informações passadas por Elza a respeito do conceito e dos elementos principais do projeto em que está trabalhando no momento. "Claro, a personalidade dela conta bastante na escolha final da imagem que vamos fazer aflorar", ele diz. "É todo um envolvimento desde o início de cada projeto, para captar o feeling."

Há quem não hesite em descrever Elza como uma espécie de entidade – Pedro Loureiro e Ricardo Muralha usaram exatamente essa palavra para se referir à amiga. "Não existe outra pessoa no mundo que tenha conseguido superar todas as adversidades da vida e ser uma diva como ela é", diz Muralha. "Ela tem uma luz, um axé muito diferente de todas as outras pessoas que eu conheço. É uma energia inigualável." Pedro compara Elza a grandes personalidades históricas, como Mahatma Gandhi ou Martin Luther King. "Ela nasceu com um propósito maior que transcende o corpo físico", fala. "Eles são diferentes da gente. Nós é que somos meros mortais."

Mas ela mesma não se vê assim. Pedro conta que, quando sugeriu que o nome do álbum lançado por Elza em 2018 fosse Deus é Mulher, ela (apesar de concordar com a afirmação em si, de que Deus seria uma entidade feminina) hesitou: "Mas eu não sou Deus, Pedro", disse; e só se sentiu mais confortável com a ideia quando o empresário explicou que queria que a cantora fosse apenas a porta-voz de uma energia divina que se encontra em todas as mulheres. Apesar de o nome do samba-enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel ter sido Elza Deusa Soares, a artista afirmou em entrevista recente: "Eu não consigo me ver Deusa. Isso é um peso muito grande."

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Elza pode não ser uma divindade, mas faz questão de estar bem perto dela – do seu Deus particular, já que ela não segue uma religião específica. "Ela é muito ligada à espiritualidade", conta a neta Vanessa. Na entrada da casa da cantora fica uma estátua de São Jorge, seu santo de devoção, iluminada 24 horas por dia por uma lâmpada vermelha. Elza também tem pendurada no pescoço uma corrente de São Jorge, que não tira nunca; e organiza um almoço de família todos os anos, no dia dedicado ao santo. No quarto, uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, iluminada por uma luz azul.

"Todos os dias de manhã, quando acorda, Elza dá bom dia para o pai dela, conversa com ele. 'Bom dia, seu Avelino. Seu Avelino, estou indo trabalhar'", narra Vanessa. "Ela ora muito. Antes de eu ir embora da casa dela sempre oramos juntas – se eu sair correndo ela me chama de volta para fazermos a oração. E ela é sensitiva. Ela percebe coisas que os outros não percebem." Como anjos que enviam mensagens por meio de sonhos, talvez?

Talvez os poderes de Elza Soares – a voz, a força para tantas voltas por cima, a admiração que ela desperta em pessoas de todas as gerações, quem sabe até sua sensitividade – sejam mesmo um agrado de São Jorge para uma filha tão devota. Talvez sejam resultado de um aprendizado, habilidades que Elza foi acumulando sem perceber ao longo de sua quase inacreditável trajetória. Ou talvez já tenham nascido com ela – como sugere a parte favorita da própria artista no samba-enredo Elza Deusa Soares. O verso? "Essa nega tem poder."

Elza Soares no show Planeta Fome

Quando: Dia 7 de março, sábado, às 21h (abertura às 20h)

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Onde: Centro de Eventos da UFSC, em Florianópolis

Ingressos no site Ingresso Nacional

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