Depois de enfrentar problemas de saúde que puseram em dúvida seu vigor, de comprar brigas com sindicalistas, credores, agricultores e meios de comunicação, de ser acusada de enriquecer indevidamente, de se ver envolvida em negociações suspeitas com o Irã para acobertar terroristas e de, enfim, ficar no centro da morte misteriosa de um procurador que a investigava, a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, cresce em popularidade e se torna elemento-chave nas eleições de 25 de outubro.

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Dentro desse quadro aparentemente adverso, havia ainda o fato de ela não ter criado um sucessor capaz de dar continuidade ao kirchnerismo no poder. Mesmo aí, porém, Cristina deu um jeito: pôs um seguidor insuspeito, o ultrakirchnerista Carlos Zannini, como vice na chapa do governador de Buenos Aires, Daniel Scioli, um político que sempre contou com sua desconfiança.

Em resumo: Cristina surpreendeu, roubou a cena e agora dá as cartas nas eleições argentinas. Para aumentar a perplexidade de analistas, há ainda outro elemento que tenderia a ser desfavorável – Cristina está há oito anos no cargo e viu a crise econômica, com inflação e desemprego em alta, corroer boa parte do poder de compra da classe média. Mais: se for levado em conta o mandato do seu marido, Néstor, o “casal K” mantém hegemonia no poder argentino há 12 anos. Néstor morreu em 2010.

O que justifica o fortalecimento de Cristina, que tem atingido algo como 50% de aprovação popular? Passada a crise do caso Nisman (a morte suspeita do procurador Alberto Nisman), houve um aumento nos gastos públicos. No último dia 15, por exemplo, Cristina anunciou, em rede nacional de rádio e TV, aumento de 30%, retroativo a 1º de junho, na remuneração universal por filho e outras ajudas pagas a 7,7 milhões de argentinos, o que equivale a 18,5% da população.

– O trabalho do governo com a população mais desfavorecida põe a presidente como protagonista nas eleições. Há quem diga que ela gasta descontroladamente para manter de pé um projeto de poder, deixando uma bomba-relógio para o próximo governo, que toma posse em 10 de dezembro. O fato é que o caráter social do seu governo mostra resultado – analisa o sociólogo argentino Ángel Ortíz.

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– A oposição está dividida e não sabe criar fatos políticos. Divide-se em misérias e pequenezas. Soma-se a isso o fato de não ter ocorrido a catástrofe econômica que todos pressagiavam – diz o jornalista Jorge Lanata, crítico ao governo e, por isso, desafeto de Cristina.

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As eleições argentinas tendem a ser acirradas. O governista Scioli aparece pontuando, com intenções de voto variando entre 30% e 36%. O prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri, de centro-direita, fica com 25% a 28%. A terceira opção, o dissidente do kirchnerismo Sérgio Massa, costuma aparecer com 16% das intenções de voto.

Presidente poderia preparar retorno

Caso se confirme a vitória da dupla Scioli-Zannini, o kirchnerismo poderá manter as rédeas da política, interferindo no Judiciário e no Legislativo e mantendo o enfrentamento com as empresas de comunicação que lhe são mais críticas. Cristina pavimentaria o caminho para ser candidata nas eleições seguintes – a Constituição argentina, como a brasileira, não permite duas reeleições seguidas, o que deixou Cristina de fora da próxima. Mas aceita o retorno para um terceiro mandato caso não seja imediatamente após o segundo.

– Se o kirchnerismo era incapaz de encontrar um candidato com expectativas de triunfo, Scioli, movido pela ambição de chegar à presidência, careceu de poder suficiente para se despojar da tutela “cristinista”. A hábil estratégia da presidente jogou um balde de água fria em quem acreditava que, mesmo com a vitória de Scioli, haveria mudança de ciclo na Argentina – diz o historiador Carlos Malamud.

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A analista política Mariel Fornoni também considera inteligente a estratégia eleitoral da presidente.

– Scioli tem alta popularidade e está bem nas pesquisas, o que é muito importante para o projeto. Não é exatamente um kirchnerista. Mas, com Zannini, esse aspecto também fica contemplado – diz.

– Cristina mantém Scioli para vencer a eleição e põe Zannini como seu representante na chapa. Visa entregar o governo, mas não entregar o poder – reforça o cientista político Rosendo Fraga.

O professor Mario Gaspar Sacchi, especialista em relações internacionais, define o quadro como “confuso” e “incerto”. Em razão dessa incerteza, Cristina e seu candidato podem ser favorecidos.

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Para manter o kirchnerismo forte, a presidente montou uma lista de candidatos a deputado federal que incluem o atual ministro da Economia, Axel Kicillof, o secretário-geral da Presidência, Eduardo “Wado” de Pedro, e o próprio filho da presidente, Máximo Kirchner. Aos 38 anos, ele é visto como o “herdeiro K” e, com o primeiro nome inscrito na lista de candidatos da Frente para a Vitória, tem a eleição praticamente garantida.

– Os recursos imensos que o kirchnerismo usou não reindustrializaram o país. Geraram esmolas que provocam gratidão nas pessoas – diz o jornalista Miguel Bonasso, que alerta para a possibilidade de o kirchnerismo formar, na Argentina, algo hegemônico como é o do Partido Revolucionário Institucional (PRI) no México.

*Zero Hora