O arquiteto Ernani Vilela, que mora em Florianópolis há 20 anos e é autor do livro Reflexos de Niemeyer, deu um depoimento sobre o mestre da arquitetura, que morreu na noite desta quarta-feira. Confira:
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“Estive com o Niemeyer várias vezes. Ele foi meu coordenador na universidade, nos dava conferências. A arquitetura dele é histórica. Em volume de obras significativas na história da arquitetura acho que é a maior de todas. Mas muito mais do que a arquitetura é a sabedoria pessoal dele. Sintético, claro e sobretudo muito intuitivo. Ele vê a coisa de maneira direta, não precisa ficar raciocinando para chegar a uma solução, ele logo vê a solução. Por isso que as obras dele são arquetípicas, trabalham com conceitos arquétipos.
O Palácio da Alvorada é uma jóia, todo facetado como um diamente. O Memorial JK é a sombra, a morte. Lá dentro é tudo meio escuro e piramidal, lembra a morte. O Supremo Tribunal Federal tem as proporções tão perfeitas que aquilo pode ser chamado de “a verdade arquitetural”. Isso não foi dito por mim, mas por Ceschiatti, o escultor que fez os anjos da Catedral de Brasília e que trabalhou muito em peças que adornam as obras do Niemeyer. A Catedral mesmo também é um arquétipo, ela é o sol, ilumina.
O Centro Cívico de Argel também é um imenso obelisco inclinado e é a “afirmação”, como arquétipo. Houve a revolução contra o colonialismo e pediram ao Niemeyer o projeto desse obelisco. Esses conceitos são coisas pouco cogitadas em arquitetura, mas ele intuitivamente dominava isso. Ele é o Freud da arquitetura.
Eu estive com Niemeyer em um jantar em Brasília em 1968, depois que ele voltou da Europa, também estive no escritório dele duas ou três vezes para fazer o livro sobre que eu escrevi, que estuda a questão dos arquétipos. Nesse jantar estava também o Ceschiatti, que era uma pessoa de muita sensibilidade visual e intelectual, e a quem o Niemeyer ouvia. Também estava o Atos Bulcão, a senhora do Oscar Niemeyer, que ajudou a tirar a mesa e lavar os pratos, o Sérgui Fiuza, meu colega arquiteto, e outro aluno chamado Ailton Levis, que faleceu recentemente.
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Pessoalmente Niemeyer era muito sintético. Uma pessoa de muita sensibilidade, muito perceptivo, mas sem ser emocional. Ele tem o perfil de um político à moda antiga. Muito simpático, mas vai direto ao assunto. Lembro que o chamei de Dr. Oscar e ele respondeu ” me chame de você, ou vão pensar que você é mais novo do que eu”, brincando. Depois eu falei que o texto dele tem influência de André Gide, e ele era homossexual, ele brincou “mas é só meu texto que tem influência dele”.
Ele tinha essas tiradas espirituosas. Niemeyer me emprestou um livro que nunca foi editado, chamado velhas fotografias. Era o único que ele tinha, o original. Eu li em uma noite e depois devolvi. Lá tem frases dele como “o imprevisto comanda o mundo” e “o mundo é um palco de ilusões”. Filosoficamente, o Niemeyer era perfeito. Quando era estudante ainda perguntei a ele se ele acreditava em Deus. A resposta foi “não acredito nem duvido”. Então ele não perdia tempo com elocubrações, era uma personalidade muito interessante. De uma calma impressionante, inclusive na hora de desenhar e escrever.”