*Por Emma Goldberg

Em 2017, Janine, uma enfermeira de 33 anos do Arizona, deu entrada no hospital para fazer uma cirurgia estomacal; antes do procedimento, disse ao médico que não queria o envolvimento direto de nenhum estudante de medicina. Depois da operação, porém, quando estava voltando da anestesia, ela conta que um residente passou no quarto para informá-la do início de seu período menstrual, que ele notara enquanto fazia o exame pélvico.

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"Que exame pélvico?", perguntou. Perturbada, tentou concatenar os eventos ocorridos enquanto estava inconsciente. Por que seus órgãos sexuais tinham sido inspecionados durante uma cirurgia abdominal, e por um estudante ainda por cima? Mais tarde, sua médica lhe explicou que a equipe médica tinha percebido que ela estava próxima de fazer o papanicolau.

Janine começou a chorar. "Comecei a ter um ataque de pânico, tentando entender o que tinha acontecido. Tenho histórico de abuso sexual, e aquilo me trouxe más lembranças", relembra, em entrevista.

Ela se sentiu ainda mais irritada pelo fato de também ser profissional da área médica: "O paciente deposita muita confiança nessa profissão, principalmente em questões mais delicadas, como a anestesia geral." (Janine pediu que fosse identificada somente pelo nome do meio. O hospital se recusou a falar sobre sua política de consentimento explícito para exames ginecológicos.)

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O exame pélvico exige a inspeção física nas partes mais íntimas do corpo da mulher, e geralmente é realizado com a paciente consciente, depois de seu consentimento, na consulta com o especialista, para verificar a ocorrência de certos tipos de câncer, infecções e outras questões de saúde reprodutiva.

Mas, em muitos estados e instituições médicas dos EUA, o profissional não precisa obter consentimento explícito para o procedimento. Às vezes, é feito por médicos e/ou residentes enquanto a paciente está anestesiada para uma cirurgia ginecológica ou de outra natureza. Geralmente, é considerado necessário, mas em muitos casos é realizado pura e simplesmente pelo benefício educacional. Em alguns hospitais, os médicos explicam o procedimento para a paciente antecipadamente, ou há detalhes mais específicos em formulários de autorização, mas há mulheres que passam por ele sem saber.

Ela não queria um exame pélvico, mas acabou forçada a fazê-lo - Foto: Lindsay D'Addato/The New York Times
(Foto: Lindsay D’Addato/The New York Times)

Não há números para indicar quantos exames pélvicos são feitos sem consentimento nos EUA, mas pesquisas regionais sugerem que a prática é comum. Uma pesquisa realizada em 2005 pela Universidade de Oklahoma concluiu que a maioria dos estudantes médicos tinha realizado exames pélvicos em pacientes inconscientes, e que em quase 75 por centos dos casos eles achavam que não houvera obtenção de consentimento.

Phoebe Friesen, especialista em ética biomédica da Universidade McGill, chamou a atenção para a questão em 2018, com artigos na "Bioethics" e "Slate", que acabaram trazendo à tona várias histórias sob a hashtag #MeTooPelvic. Friesen ficou sabendo dessas ocorrências enquanto realizava um seminário sobre bioética no Hospital Sinai de Nova York, ao ouvir a narrativa de alguns estudantes que basicamente se resumia a "posso enfiar a mão na vagina dessa mulher porque conta como experiência".

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Sarah Wright, professora de ciências em Madison, no Wisconsin, conta que recebeu o diagnóstico de sensibilidade extrema na vulva após uma cirurgia em 2009. Ficou imaginando como uma operação feita através de incisões no abdome poderia ter afetado seus órgãos sexuais, e concluiu que ou utilizaram um manipulador uterino, ou fizeram um exame pélvico sem seu conhecimento. Por isso, quando teve de marcar nova cirurgia com a Faculdade de Medicina e Saúde Pública da Universidade do Wisconsin, em 2018, pediu para fazer uma autorização de próprio punho.

"A mulher inconsciente em uma mesa de operação está no seu estado mais vulnerável; se alguém vai inserir algo em sua vagina, sejam as mãos ou instrumentos, isso precisa ser comunicado", diz Wright.

Ela conta que a administração do departamento recusou seu pedido. "Perguntaram se era imprescindível, porque, se fosse, era melhor eu fazer a cirurgia em outro lugar."

A faculdade se recusou a falar dos detalhes do caso de Wright, mas, em 2019, adotou uma nova política, exigindo dos médicos a obtenção de autorização antes de permitir que os residentes realizassem exames delicados que deveriam estar relacionados a tratamentos de rotina em pacientes anestesiadas.

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"A formalização da política de exames delicados fornece padrões claros, específicos e amplamente utilizados para a autorização de exames pélvicos, de mama, urogenitais, de próstata e retais", explica a dra. Laurel Rice, diretora do departamento de obstetrícia e ginecologia da faculdade.

Robin Fretwell Wilson, professora de direito e reitora associada da Faculdade de Direito da Universidade de Illinois - Foto: Rachel Woolf/The New York Times
Robin Fretwell Wilson, professora de direito e reitora associada da Faculdade de Direito da Universidade de Illinois (Foto: Rachel Woolf/The New York Times)

No ano passado, uma onda de projetos de lei proibiu o exame pélvico não autorizado em onze estados dos EUA; Maryland, Utah, Nova York e Delaware promulgaram leis exigindo autorização expressa, juntando-se a outros seis que já tinham regras para esses casos. Diversas instituições médicas criaram medidas próprias.

"Sabemos que o corpo feminino não deve ser tratado como propriedade de alguém, e isso se estende também à medicina. Em tempos de movimento MeToo, isso fica ainda mais evidente", afirma Robin Fretwell Wilson, professora e reitora associada da Faculdade de Direito da Universidade do Illinois, que há tempos defende a criação de leis de autorização informada.

'É um pesadelo?'

Para os residentes, fazer um exame sem consentimento gera um mal-estar que vai sumindo com o tempo; já para as pacientes, as marcas são mais profundas, muitas vezes afetando a confiança que tinham nos profissionais da saúde.

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Em 2007, Ashley Weitz, de 36 anos, foi ao pronto atendimento do Intermountain Healthcare LDS Hospital, em Salt Lake City, Utah, porque não conseguia parar de vomitar. Fez um ultrassom e um exame de sangue, a rotina padrão; o médico que a atendeu repassou uma lista de causas prováveis para o problema e perguntou se poderia fazer o exame para DST; Weitz se recusou, explicando que era celibatária e sobrevivente de abusos na infância, e preferia não fazer o procedimento.

A seguir, ele lhe deu Fenergan, um sedativo injetável; depois de um tempo, quando recobrou a consciência, ela se viu com os pés sobre estribos de metal e sentiu um espéculo dentro de si, frio e estranho. Gritou de dor, e se lembra de o médico ter respondido: "Aguenta aí, estou quase acabando."

Sarah Wright, professora de ciências, em sua casa em Madison - Foto: Taylor Glascock/for the New York Times
Sarah Wright, professora de ciências, em sua casa em Madison (Foto: Taylor Glascock/for the New York Times)

"Só me lembro da dor e da confusão; parecia que estava tendo um pesadelo. Estava sonolenta, saindo da sedação. Levantei a cabeça e só o vi reunindo as amostras que coletara sem minha permissão", conta Weits.

Ela faz questão de dizer que não teria problema algum em fazer o procedimento se tivesse sido informada de seu objetivo. "Se o médico tivesse conversado comigo, explicado que ajudaria no diagnóstico, provavelmente eu teria consentido. Foi a forma como ele procedeu que gerou todo esse trauma."

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Weitz prestou depoimento na Câmara de Utah a favor do projeto de lei que exige o consentimento expresso para esses casos, que acabou promulgado no ano passado. Um porta-voz do Intermountain Healthcare disse que seus "profissionais não fazem exames nem procedimentos, incluindo na área pélvica, sem consentimento informado, de acordo com a lei estadual".

A dra. Jennifer Goedken, obstetra e ginecologista da Universidade Emory, diz que trabalhar em um hospital universitário lhe mostrou a importância de dar aos alunos a experiência prática do exame pélvico, e a princípio temeu que o debate legislativo pudesse estigmatizar o procedimento.

"Como médicos que cuidam da saúde da mulher, não queremos que o exame pélvico seja relegado a tabu, mas sim que os residentes aprendam a reconhecer anormalidades e fazer uma análise boa e confortável", conclui.

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