Este tem sido o ano de o Brasil lidar com a ciência em números. Mais especificamente, os seguintes: 90 mil bolsistas e 20 mil pesquisadores correm o risco de ficar sem financiamento a partir de setembro, caso o orçamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) não seja descongelado imediatamente – do valor de R$ 1,3 bilhão anual aprovado, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) autoriza o uso de apenas R$ 730 milhões pelo órgão. O orçamento anual deste ministério, por sinal, hoje fica na casa dos R$ 2,5 bilhões, segundo o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SPBC) – apenas um quarto do que estava disponível em 2010.

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No Ministério da Educação (MEC), os números não são mais animadores – os cortes chegam a R$ 4,3 bilhões, com impacto imediato nas universidades brasileiras. A Universidade de Brasília (UnB) registra um déficit de R$ 100 milhões, o que compromete não só o sustento dos cerca de 300 funcionários terceirizados que foram demitidos como também a capacidade da instituição de pagar até a conta de luz. Ao menos na UnB ainda não se fala em fechamento – uma situação menos desesperadora da que acontece, por exemplo, na Universidade Federal dos Vales de Jequitinhonha e Mucuri, em Minas Gerais. Os R$ 60 milhões em obras paralisadas significam que, caso mais dinheiro não entre com urgência, até o fim do ano os campi podem parar por completo.

E a crise não atinge apenas as federais. Basta abrir qualquer jornal para acompanhar a situação de calamidade na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, onde as atividades estão suspensas por conta da falta de salário para professores e funcionários. E antes que se respire em alívio porque a crise é só nas públicas, vale lembrar que o setor privado não escapa do martelo da austeridade. Os cortes no Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), por exemplo, têm significado menos alunos para instituições como a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, o que, por sua vez, levou à demissão de um número chocante de 100 professores.

É preocupante que este cenário não tenha despertado um levante popular – ou, ao menos, das classes de pesquisadores, professores, funcionários técnico-administrativos, alunos de iniciação científica e pós-graduandos –, mas talvez isto possa ser explicado pela nebulosidade de se apreender a ciência em números. Ou pela nebulosidade da ciência em si. Sem entrar nos pormenores dos trabalhos que dependem dos valores que hoje não entram mais, fica difícil compreender exatamente o que se perde quando a ciência perde tanto. O conhecimento científico é desigualmente distribuído – parte disso vem da situação histórica do Brasil como uma nação de desequilíbrios, onde o acesso à educação superior teve sua primeira grande explosão apenas na última década e meia. A outra parte é constitutiva da pesquisa especializada: o volume de pesquisas é tão grande (por enquanto) e o vocabulário de termos e conceitos tão complexo que desvendar os emaranhados do que envolve cada tipo de pesquisa, e que formas os seus resultados tomam, acaba sendo uma tarefa apta a ser realizada apenas pelos próprios pesquisadores ou por aqueles que circulam em suas órbitas.

Mesmo assim, há aspectos da ciência que dependem muito menos do conhecimento técnico e acadêmico. Com o crescimento dos investimentos em pesquisa que o Brasil observou desde os anos 2000 – que recuam dramaticamente agora – a ciência virou, mais do que nunca, objeto de si mesma. Órgãos públicos e instituições privadas de ensino, investigação e fomento, diante da possibilidade de uma expansão sem precedentes, levaram a pesquisa como nunca antes à esfera pública. A necessidade de novos estudiosos era real, e cada vez mais parecia que se dispunha dos recursos para sustentá-los. As parcerias internacionais e o famoso Ciência sem Fronteiras (descanse em paz) inseriram na pauta dos debates sociais a relevância, em termos de política externa, de se injetar dinheiro nesta área. Talvez pela primeira vez pensávamos observar um alastramento efetivo daquela velha máxima: educação não é despesa, é investimento.

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Nesse contexto, escancarou-se uma nova ideia de ciência para o Brasil. Milhares de novos pesquisadores conseguiram dedicar-se integralmente a seus esforços investigativos, seja por bolsas de pós-graduação ou emprego nos grandes institutos. O crescimento do setor impulsionou a armação de todo um aparato de suporte na forma de funcionários técnicos. A luta de movimentos sociais – amparados em nada pequena parte pelas pesquisas realizadas nas ciências humanas – significou a entrada na classe acadêmica de números inéditos de pessoas negras, indígenas e pertencentes às camadas mais pobres. Grupos que historicamente apenas recebiam os efeitos da ciência, mas a quem não era dada a oportunidade, a nível institucional, de criar a sua própria.

Neste ano, a onda implacável de cortes despertou por lado daqueles que a opõem o recurso constante à ideia de ciência como desenvolvimento. “Deixem a ciência em paz”, pedem, “sem ciência o Brasil não vai para frente.” Não deixa de ser verdade. Mas quando o que é necessário é uma mobilização massiva em defesa da produção de conhecimento, não estamos apenas diante de uma crise, mas de uma chance de reavaliar o que exatamente buscamos defender. “Ciência = desenvolvimento” é uma fórmula vaga demais, e a nebulosidade da ciência para aqueles que não participam dela torna esta fórmula passível de apropriações duvidosas.

Ora, a ciência é essencial para projetos de expansão desenvolvimentista que violam flagrantemente as orientações para a preservação do meio-ambiente e o respeito às terras de populações tradicionais e indígenas. A ciência também trabalha a favor de setores que hoje têm ligação direta com seu grito de morte, como aqueles cuja facilitação pelo governo federal do pagamento de dívidas representa um potencial de perda de R$ 10 bilhões aos cofres públicos ao longo dos próximos anos – R$ 10 bilhões que poderiam manter funcionando os laboratórios brasileiros, hoje se afogando na falta de recursos. E só o agronegócio quer ver a Universidade de Integração Latino-Americana (Unila) transformada em uma instituição voltada apenas aos seus interesses, que é exatamente o que almeja uma proposta correndo atualmente.

A ciência pode ser nebulosa, mas não é vaga. Nada é mais claro hoje do que a sua importância, sinalizada nos últimos anos, para a mudança do cenário social brasileiro: de um cenário de exclusão para um cenário de diálogo direto entre setores da população historicamente divididos. O poder da ciência não está em construir uma nação e obedecer ¿interesses nacionais¿, mas sim formar um ambiente onde nações e projetos diferentes possam circular juntos e contribuir uns com os outros. Qualquer coisa menos que isso – seja a morte da ciência ou o apelo apenas ao desenvolvimento de interesses particulares – significa a criação de um Brasil repleto de fronteiras, onde a ciência (ou a falta da mesma) vira divisão violenta. A nossa pauta deve ser exatamente o oposto: ciência, efetivamente, sem fronteiras.

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*Pesquisador e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

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