Eduardo Galeano não gosta de conversar por telefone ou pela internet. Mas assumiu o compromisso de falar com a reportagem sobre o novo livro, “Espelhos – uma História Quase Universal”, assim que a tradução fosse concluída pelo jornalista e contista Eric Nepomuceno. O escritor estará em Porto Alegre de 12 a 14 de novembro para a Feira do Livro.
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“Espelhos” é o 13º livro do uruguaio no catálogo da editora gaúcha L&PM, que só não edita “As Veias Abertas da América Latina”, de 1970, o primeiro best-seller de Galeano e até hoje sob os cuidados da editora Paz e Terra. “Espelhos” está na lista dos mais vendidos na Espanha e na Argentina. Reúne 600 breves relatos elaborados pouco a pouco, com releituras que Galeano faz da história e de personagens bíblicos. Começa com Adão e Eva, passa por figuras e episódios do Egito, de Roma, da China, da Europa e vem até hoje.
O autor de 68 anos se define como um escritor que remexe no lixão da história, como fez pela primeira vez em “Veias Abertas”, e continua implacável com mitos e heróis, inclusive os uruguaios.
A entrevista foi respondida de sua casa em Montevidéu e, na tradução, foram mantidas deliberadamente algumas expressões em espanhol. Galeano fala do livro, de Cuba, do rompimento com o presidente uruguaio Tabaré Vázquez, de Barack Obama e de futebol. Escritor com origem no jornalismo, declara o apego incondicional ao jornal impresso e ao cheiro da tinta no papel.
Espelhos tem no título e no subtítulo uma referência a Borges. O livro é uma leitura da história de um modo borgiano?
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Eduardo Galeano – Jorge Luis Borges odiava os espelhos porque multiplicam as pessoas. Porque multiplicam as pessoas, rendi uma homenagem no título do livro.
Remexer na história, como faz desde “Veias Abertas”, é a sua obsessão?
Galeano – Fui um péssimo estudante de história, e os museus me aborrecem. Me apaixona, isso sim, a realidade, suas histórias secretas, suas zonas invisíveis que escondem as pequenas coisas da vida cotidiana. E isso vale para o presente e para o passado também. E vale para a realidade desperta e para a realidade adormecida, ou que acontece enquanto dorme e tem sonhos e pesadelos.
Como é possível contar a história com tanto lirismo, se invariavelmente a história oficial trata tão mal os personagens que o senhor retoma com poesia em prosa?
Galeano – É ela, não sou eu. Ela, a realidade, é que me oferece essa poesia. Eu a traduzo, trabalhando duro para ser digno de sua capacidade de ser bela. E encontro a mais alta beleza na lixeira da história, ali onde repousam os desdenhados, os ninguém, os que têm voz, mas não são ouvidos. Elas e eles são os que fulguram com as luzes mais deslumbrantes no ignorado arco-íris da terra.
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Quanto tempo o senhor levou para escrever “Espelhos”?
Galeano – Não sei. Os livros me escrevem, muito lentamente. Vão crescendo dentro de mim, pouco a pouco, e vão se armando a seu modo e a sua maneira. Essa aventura louca de contar a história desconhecida do mundo nasceu sem que eu me desse conta, a partir de relatos que fui escrevendo sem saber por que e nem para quê. Durante anos, no sei quantos, até que isso se converteu num livro de 600 relatos breves.
De onde saíram tantas informações?
Galeano – De alguma maneira mágica, “Espelhos” foi adquirindo uma estrutura, uma armação, que no começo podia parecer produto do manicômio, porque mesclava os tempos e os lugares sem tom e sem som, mas foi ganhando coerência sem perder sua essência, e à margem das normas tradicionais seguiu mesclando passado e presente e oferecendo muitos mundos ao mesmo tempo. Enquanto esse processo acontecia, eu encontrava mais e mais histórias que valia a pena contar, e cada uma buscava e encontrava seu lugar no conjunto. Do total que escrevi, mais de cem histórias ficaram de fora. O sacrifício não foi fácil. Elas, todavia, me acusam, me golpeiam a espalda, me perguntam: por que me jogaste no exílio?
Como foi o entendimento com o brasileiro Eric Nepomuceno em mais essa tradução?
Galeano – Acompanhei o trabalho de Eric passo a passo. Sugeri, propus mudanças, mas ele teve sempre a última palavra. Amo o jeito brasileiro de falar, mas ele sabe melhor. Essa diferença o favorece.
No momento da tradução, surgiram algumas daquelas palavras ditas intraduzíveis?
Galeano – Sim, mas não recordo quais. Algumas palavras nós inventamos, o que alegra o livro.
Heróis oficiais são tratados pelo senhor de forma implacável, como Fructuoso Rivera, o primeiro presidente uruguaio. Chegará o dia em que heróis como este, que “civilizaram” seus países matando índios, deixarão de ser nome de rua?
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Galeano – É difícil. Enquanto o poder não for trocado, seus donos continuarão nos proibindo de recordar. Rivera é nome da maior avenida do Uruguai, e outro assassino de índios, o general Roca, tem a estátua mais alta da Argentina.
“Espelhos” conta que, dependendo da época, dos interesses e dos preconceitos, o diabo é judeu, muçulmano, negro, homossexual, mulher, índio. Qual é o diabo de plantão no momento?
Galeano – No teatro do Bem e do Mal, Deus e o diabo trocam papéis. Stálin, Saddam Hussein e Bin Laden eram bons, buenísimos, antes de ser maus, malísimos. Este último, Bin Laden, está sendo no momento o diabo de maior duração nos tempos que correm: ele é um burocrata a serviço da ditadura universal do medo, always ready (sempre pronto) para assustar a opinião pública anunciando que vai comer crianças vivas.
Tem lido algum autor brasileiro?
Galeano – Muito mais que lido. Monteiro Lobato alegrou minha infância. Machado de Assis ainda é, a meu juízo, o melhor escritor latino-americano do século 19. Darcy Ribeiro eu não só li como tive a sorte de tê-lo como meu mestre durante seu exílio em Montevidéu. Também tive a sorte de escutar os poemas sujos de Ferreira Gullar em primicia pronunciada da sua boca, durante seu exílio en Buenos Aires. E paro aqui porque a lista seria extensa e soaria a demagogia.
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A internet ajuda a literatura?
Galeano – Reconheço que sim. Ajuda. Eu tinha preconceitos contra os computadores, porque suspeitava que bebiam à noite e que por isso, durante o dia, por causa da ressaca, faziam coisas incompreensíveis. A suspeita continua, mas isso não me impede que reconhecer a utilidade da Internet e outras utilidades dessa máquina. É um paradoxo que alimenta o otimismo: a Internet nasceu a serviço da morte, para programar as operações do Pentágono em escala mundial, e agora serve, entre outras coisas, para difundir vozes alternativas que antes tocavam sinos de pau. E também para que se conheçam escritores que antes estavam condenados a escrever para a família.
O senhor usa a Internet para conversar?
Galeano – Não, não cheguei a isso. A contragosto, uso o telefone, e isso não me agrada muito. Para mim, um pré-histórico, a conversa ocorre corpo a corpo e cara a cara.
Lê jornais na internet?
Galeano – Não, tampouco. Me agrada que os jornais estalem na minha mão e que cheirem a tinta.
Em julho, em Montevidéu, o senhor foi homenageado por todos os presidentes do Mercosul. Mas o presidente uruguaio Tabaré Vázquez não apareceu. O que aconteceu?
Galeano – Sim, é verdade. Fui eleito o primeiro Cidadão Ilustre do Mercosul, e o único governo que faltou ao evento foi o governo do meu país. Por que, não sei. Terás de perguntar a ele.
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O senhor votou em Tabaré para presidente em 2004?
Galeano – Sim, votei.
Tabaré estaria ressentido com suas críticas às indústrias papeleiras?
Galeano – Nem sequer são papeleiras. São empresas gigantes, estrangeiras, que produzem celulose, a etapa mais tóxica do processo de fabricação do papel, para exportar matéria-prima para fábricas distantes. É o pão para hoje e a fome para amanhã. Eu propus que se instalassem em Punta del Este, para melhorar a qualidade de vida do balneário, mas não me deram atenção. O Uruguai, país pequeno, está hipotecando seus recursos naturais. Essas empresas gigantes vão envenenar o ar, vão secar a terra e chupar a água. Nós, latino-americanos, levamos cinco séculos repetindo a história. Já é hora de recordar que os recursos naturais se vão sem dizer adeus.
Tabaré pode ser colocado ao lado de Chávez, Lugo, Morales e Rafael Correa como um dos novos líderes da esquerda latino-americana?
Galeano – O importante é que em toda a América do Sul, ou em quase toda, há uma energia popular de mudança, que se expressa de diversas maneiras, porque afortunadamente a América Latina é um vasto reino da diversidade.
Ao citar Marx, no livro, o senhor relembra o Manifesto Comunista e diz que ”o capitalismo é um bruxo incapaz de controlar as forças que desata”. Com que cara o capitalismo sairá dessa crise?
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Galeano – Vivemos a confirmação de que o mundo está com as patas viradas para cima. Se recompensa a falta de escrúpulos e se castiga o trabalho. Banqueiros e especuladores receberam a maior esmola de toda a história da humanidade. Somando as ajudas de Estados Unidos e Europa, os fundos públicos presentearam três trilhões de dólares aos responsáveis por essa trapaça. Todos pagamos o pato pelos erros de alguns. Mas o capitalismo tem mais de sete vidas, é um sistema astuto, muito sabido, capaz de cobrar entrada a cada um de seus funerais.
O senhor já aplicou dinheiro em bolsas de valores?
Galeano – Não. Estou na posição de aplicador em ouro. Dos muelas (dos dentes molares).
O cientista político brasileiro Emir Sader diz que o senhor é o mais subversivo dos seres humanos. Como é possível ser subversivo por tanto tempo?
Galeano – Coisas do Emir. Eu sou bonzinho, um cara inofensivo. Subversivo, eu? Bem comportado, sempre respeitando a luz vermelha. Sou, isso sim, incompreendido.
E a sua relação de amor com Cuba como está?
Galeano – Continua. Mas também é bastante incompreendida. Porque minha consciência continua acima de qualquer dever de obediência. Continuo acreditando que a onipotência do Estado não é a melhor resposta à onipotência do mercado e ainda pratico aquele conselho de Fonseca Amador, o fundador do sandinismo na Nicarágua: “Amigo, amigo verdadeiro, é quem elogia pelas costas e critica pela frente”.
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Encontrou-se com Fidel depois que ele adoeceu?
Galeano – Não.
Sem Fidel, Cuba continuará sendo o que é?
Galeano – Tomara que sim, nas conquistas essenciais da revolução cubana: a dignidade e a solidariedade. Dignidade insólita num pequeno país antes preparado para a humilhação, e solidariedade não menos insólita, que apesar da sua pobreza semeia médicos por todo o mundo.
Como vê o governo Lula?
Galeano – Não vou vender gelo aos esquimós. Não opino sobre o Brasil numa entrevista para o Brasil.
Obama poderá finalmente terminar com o embargo a Cuba?
Galeano – Também nesse caso é hora de acabar com quase meio século de castigo infame.
Vamos falar de futebol. O Uruguai vai à Copa?
Galeano – Não sei. Os uruguaios estamos condenados a sofrer. Até o último minuto, não saberemos se vamos ou não vamos. Quando era criança, aprendi na Igreja que que sofrer é bom, porque sofrendo se chega ao céu. Que assim seja. Se não chegarmos à Copa, pelo menos chegaremos ao céu.
Quando escreve sobre a vitória de 2 a 1 do Uruguai sobre o Brasil, na Copa de 50, o senhor diz: ”Na noite anterior, ninguém conseguia dormir. Na manhã seguinte, ninguém queria acordar”. O Brasil sofre até hoje aquela derrota. Os uruguaios ainda saboreiam aquela Copa?
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Galeano – Ainda. E isso nos fez prisioneiros da nostalgia. Não é ruim, mas é preferível ter esperança. Se recordar é bom, viver é melhor. Eu me recordo sobretudo do que aconteceu depois do jogo. Obdulio Varela, o capitão, o motor daquela vitória impossível, passou a noite, de bar em bar, abraçado aos vencidos, bebendo com eles e dizendo: ”Como pude fazer-lhes esta maldade?” Ele os via sofrendo, e eram todos anjos. Umas horas antes, eram uma besta de mais de 200 mil caras ferozes. Vistos um a um, a situação mudava. Ele me contou, e ele não mentia.
O futebol está mais feio?
Galeano – O futebol profissional sacrifica, inevitavelmente, a beleza e a fantasia em todos os altares do êxito. Se joga pelo dever de ganhar e não pelo prazer de jogar. Isso é normal num sistema mundial de poder em que o que não é rentável não deve existir, e o fracasso é o único pecado que não tem redenção.
Quem é o grande craque do futebol mundial hoje?
Galeano – Dos que vi, Peledona foi o melhor.
Dizem em Porto Alegre que aqui o senhor é especialmente admirado pelas mulheres, que lêem muito mais os seus livros do que os homens. Este é um fenômeno gaúcho?
Galeano – Gracias. Não sabia. Transmitirei essa boa notícia à UMC (União Mundial dos Carecas).
Há um lugar em especial em Porto Alegre que queira rever?
Galeano – As pessoas. As cidades não existem. Existem as pessoas que nelas respiram e por elas caminham. Não me apego a edifícios. As pessoas, essas me fazem falta.
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Quando fala do prazer de escrever, o senhor cita Ganesha, a divindade hindu, para dizer que as primeiras palavras de uma carta e de um livro são as mais importantes. O próximo livro já tem as primeiras palavras?
Galeano – Segredo de Estado.
Recentemente, o senhor se interrogou se este mundo é um destino. E também indagou-se: será que ele não está grávido de outro? Que outro mundo este mundo ainda pode parir?
Galeano – O mundo que o mundo quis ser quando todavia não era: uma casa de todos.