Voltava cedo da verdureira carregando oito cebolas, seis poncãs, três mangas, uma abóbora e uma penca de bananas verdolengas quando me deparei com a imagem surpreendente: junto ao orelhão, estavam três pessoas. Uma utilizava o telefone público e duas esperavam a vez.
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Ainda que não passassem de três, vi ali uma fila considerável para esta altura dos acontecimentos. Três almas certamente aflitas por contato imediato (um negócio fechado? Uma consulta médica repentina? Alguém que esqueceu o Dia das Mães? A crise batendo no mercado dos créditos de celular?) e dependentes do quase ultrapassado orelhão.
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Uma surpresa e tanto. Olhei para a fila como se tivesse avistado um passarinho raro. Agora, só falta estar no balcão da papelaria esperando o vendedor trazer tinta colorida para impressora e alguém ao lado pedir fita para máquina de escrever. Só falta isso
Surpreso, deixei-me ir mais fundo nas reflexões que o momento de fazer a feira frugal permitia. Talvez já devesse ser surpresa encontrar orelhões. E funcionando, então! E com fila? Foi uma grande coincidência, não acredito que volte a ver isso tão cedo, a menos que me mude para algum cafundó. Os sites anunciavam que ontem Mercúrio passaria diante do Sol, num fenômeno que mobilizava os especialistas. Pode ter contribuído, como dizem que a Lua mexe com a hora do parto e a trovoada, com a andada do caranguejo. Vá saber.
Não devem ser muitos os orelhões em pleno funcionamento. Não devem receber mais a atenção que recebiam. Outro dia, numa limpeza de gavetas, encontrei fichas de telefone público. Cor de chumbo, quase do tamanho de moedas de 25 centavos. A fábrica deve ter fechado faz tempo, ultrapassada pela indústria dos cartões telefônicos, que também já deve produzir outras coisas para sobreviver. Desisti de entregar as tais fichas ao pacote dos recicláveis e guardei junto a umas cédulas antigas, dinheiro que não vale mais faz tempo. Recordar é viver.
Há 23 anos, botei assinatura num abaixo-assinado que pedia um orelhão na rua em que fui morar, quando o Comasa ainda pertencia ao Boa Vista – tempos depois, virou bairro com identidade própria. Ganhamos orelhão, nosso sonho de consumo à época, vermelho como a camisa do América. Imagine se hoje ainda se corre atrás de petições deste tipo.
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Mas que o orelhão não morreu, agora sou testemunha ocular. Sobreviveu às depredações, à ferramenta de trote e, por enquanto, à parafernália que parece tornar tudo tão monótono, tão sem surpresas.