Três dias antes de ser assassinado, Eduardo Coutinho deixou gravadas suas derradeiras impressões sobre Cabra Marcado para Morrer (1984), um dos melhores e mais importantes filmes da história do cinema brasileiro. Os comentários do diretor estão na edição especial em DVD do documentário, lançado em razão dos 50 anos do golpe que colocou o Brasil sob a ditadura militar, período do qual Cabra… é cria e síntese.
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Coutinho gravou a faixa de comentários dia 30 de janeiro passado. Tinha 80 anos. Falando sobre o filme ao seu lado no estúdio estavam o montador de Cabra…, Eduardo Escorel, e o crítico de cinema Carlos Alberto Mattos.
– A gravação foi de uma sentada só, simultaneamente à projeção do filme, sem nenhuma preparação prévia – diz Escorel. – Coutinho estava muito falante e indisciplinado, não se preocupava em falar coisas referidas à cena exata que passava. Foram marcantes a paixão e o entusiasmo com que ele falou do filme, de maneira muito intensa, como se o tivesse feito na véspera.
Documentarista João Moreira Salles fala sobre a importância de Cabra Marcado para Morrer Continua depois da publicidade Montador Eduardo Escorel comenta parceria com Coutinho
Cabra Marcado para Morrer tem origem no longa de ficção que Coutinho começou a rodar em fevereiro de 1964, sobre a luta de João Pedro Teixeira, líder camponês assassinado em Sapé, na Paraíba, em 1962, a mando de latifundiários. As filmagens tiveram como cenário o Engenho Galileia (PE) – em razão do clima de violência e tensão na região onde ocorreu o crime -, mas foram abortadas pelo golpe que se desenrolou entre 31 de março e 1º de abril. Coutinho retomaria o projeto em 1981, como um documentário sobre o filme inacabado que refazia os passos da trágica saga de Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro, e seus 11 filhos.
O DVD de Cabra.., lançamento do Instituto Moreira Salles (IMS) ao preço de R$ 44,90, tem como atrativos um livreto com 71 páginas com depoimentos e críticas publicas em seu lançamento e outros dois documentários: o curta Sobreviventes da Galileia e o longa A Família de Elizabeth Teixeira, ambos registrados por Coutinho em janeiro de 2013. No primeiro, o diretor reencontra em Galileia e Vitória de Santo Antão (PE), em clima de velhos amigos, dois dos camponeses que filmou em 1964 e 1981, Cícero e João José (conhecido como Dão da Galileia). Falam da passagem dos tempo (“Tá acabadinho, tá velho que nem eu”, diz Cícero a Coutinho) e das andanças de cada um nos mais de 30 anos desde o último encontro. A simplicidade e a perseverança para seguir em frente em meio aos reveses da vida aproximam estes três homens.
Cícero garante: ” Valeu a pena (a luta). Eu vivia em cativeiro, sete dias por semana, não podia descansar. Hoje ninguém é cativo de ninguém, é cativo de suas obrigações”. Dão da Galileia diz que correu o mundo, que perdeu casa e a mulher para o “urso” e que trabalhou como vigia “trocando tiro com bandido e dando fim em cabra safado”.
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Em A Família de Elizabeth Teixeira, Coutinho revê a personagem com a qual se conectou há mais de 50 anos, quando, em abril de 1962, em Sapé, na primeira e única vez que empunhou uma câmera, focou por acaso o rosto desolado de Elizabeth quando ela protestava contra a morte do marido, um crime condenado ao esquecimento por envolver gente poderosa. À época, Coutinho realizava na região um documentário para a União Nacional dos Estudantes (UNE) sobre a realidade social do Nordeste.
Cabra… foi lançado no final de 1984, nos últimos suspiros da ditadura. Mas a sucessão de tragédias na vida de Elizabeth, protagonista do filme que, dizia Coutinho, definiu sua carreira de cineasta, prosseguiria nas décadas seguintes, como mostra este novo documentário.
O encontro é na Paraíba, onde Elizabeth, prestes a completar 88 anos recebe Coutinho ao lado dos dois filhos homens que lhe sobraram, Isaac, formado médico em Cuba, e Carlos. As conversas retomam a diáspora da família Teixeira provocada pelo golpe militar. Filhos de Elizabeth morreram de morte natural ou violenta (um irmão matou outro), com alguns os laços bruscamente rompidos jamais foram reatados e com poucos deles ela mantém afetuosa convivência.
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A nova busca de Coutinho o levou à favela de Ramos, no Rio, onde ele revê duas filhas de Elizabeth, Marta, que tem dois filhos assassinados marcado seu rosário de tragédias, e Marinês, que desfia ao diretor a sua cota nos traumas da família. Coutinho ouve. E os que falam com ele parecem encontrar no interlocutor atento e interessado instantes de alívio para tantas cicatrizes e feridas que seguem ardendo. Entre as lágrimas, Coutinho ajuda a abrir sorrisos trancados.
Elizabeth tem uma neta que se formou em história e mantém acesa, em um modesto memorial sobre Ligas Camponesas erguido em Sapé, a memória da luta de seus avós. São as grandes histórias da vida miúda que Coutinho conseguiu, outra vez, como em tantos de seus bons filmes, contar tão bem.
Amigo de Coutinho, José Carlos Avellar, crítico e curador dos projetos de cinema do IMS, acompanhou a gravação da faixa de comentários.
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– Existem duas paixões do Coutinho por Cabra Marcado para Morrer. – destaca Avellar. – Primeiro, com a questão que o filme trata e o envolvimento dele com a história que conheceu em 1962. A outra envolve a questão cinematográfica, a obstinação dele por voltar a filmar essa história, concluir o projeto e com aquelas pessoas. Isso levou Coutinho a um processo de construção cinematográfica, à descoberta de uma maneira de fazer cinema, que foi fundamental. A relação entre cinema e realidade orientou todo o trabalho dele, e ele foi aprimorando e variando esse processo em seus outros filmes, chegando com a câmera para surpreender as pessoas ou esperando as pessoas para surpreender a câmera.
Segundo Avellar, a proposta de realizar os dois novos documentários teve início em um projeto do IMS que envolvia Coutinho: voltar ao ano de 1964 para discutir as propostas culturais que estavam ali no momento em que a ditadura militar se implantou no Brasil.
– Como já tínhamos previsto e lançamento do DVD do Cabra… em 31 de março, o IMS propõs ao Coutinho voltar a falar com a família da Elizabeth – destaca Avellar. – Ele imediatamente disse que gostaria de falar com as duas filhas dela que vivem no Rio. Achava que havia ficado uma coisa incompleta ali. A ida à Paraíba foi uma consequência. Foi um encontro de velhos amigos que retomam uma conversa interrompida.
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O reencontro com “Cabra Marcado par Morrer”
Eduardo Coutinho não gostava de rever seus filmes. “Tá feito, tá feito”, dizia.
Natural, portanto, que no seu reencontro com Cabra Marcado para Morrer, para gravar a faixa comentada do DVD recém-lançado, o mestre se mostre um tanto inquieto, sem perder o bom humor, diante do que acha que deveria ter feito e não fez.
Coutinho manda um “fui incompetente” ali, solta um “fui muito irresponsável” mais adiante. Emociona-se com frequência. Começa sua fala com considerações sobre a criatividade do diretor de fotografia Edgar Moura na concepção dos planos de abertura do documentário (a sessão que projeta aos camponeses da Galileia, em 1981, cenas do filme inacabado de 1964). Sobre o longa de ficção de 1964 estrelado por atores amadores e com Elizabeth Teixeira vivendo seu próprio papel: “O roteiro foi escrito em três dias sem eu saber o que estava fazendo. Foi feita uma leitura e todo mundo dormia”, diverte-se.
Coutinho fala com o montador Eduardo Escorel e o crítico Carlos Alberto Mattos sobre estrutura formal de Cabra…, com pelo menos seis diferentes linhas narrativas “e uma protagonista que aparece somente aos 27 minutos”. Relembra como usou e subverteu, nas entrevistas de 1981, sua experiência na linha de frente do Globo Repórter.
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Em clima de conversa informal, com direito a celular inconveniente tocando (o dele), Coutinho se emociona ao ver cenas como a do camponês que recorda, em 1981, suas falas como ator improvisado em 1964. Revela que criou um “defeito técnico” para suprimir uma fala em que Elizabeth fazia referência ao alcoolismo do filho Abraão (“Achei que não ia ficar bem”). E conta que pagou por uma entrevista, entre outras considerações sobre procedimentos éticos (“Usar imagem de cadáver é inconcebível, mas só descobri depois das filmagens a foto do João Pedro com a família”).
Coutinho reafirma seu grande trauma como cineasta: no meio da entrevista de João Mariano, que vivia João Pedro Teixeira, ele o interrompe acreditando haver um problema técnico. Na volta, o entrevistado perde o fio da memória e desvia do que estava dizendo. Ao lembrar a terrível história do camponês João Virgínio, barbaramente torturado por agentes da repressão, Coutinho fala sobre as horas em que ficou detido em Recife, logo após o golpe: “Sonhei com essa prisão por anos. Eu fui interrogado pela dupla clássica de policiais, um calmo e outro com facão na mão. Se eu fosse torturado, contava da minha mãe. As pessoas não sabem o que é o medo. Não sou um canalha por acaso. É canalha um cara que fala por não querer levar um alfinete na unha?”.
Quando revê uma sequência em que Elizabeth mareja os olhos ao ser elogiada por um grupo de amigas, em meio ao processo de retomada de sua identidade após anos de clandestinidade e nome falso, Coutinho se abre na emoção: “É o único momento em que ela chora. Uma mulher que falou de coisas terríveis, de tragédias. E há esse troço, entende, que é a amizade, que transcende, que faz chorar, porra”.
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Vez que outra surge nos comentário uma divergência entre o trio de comentaristas, sobre a concepção de uma cena, sobre um recurso que foi usado, detalhes que o tempo e a memória pode ter transformado em diferentes percepções.
– Quando a cópia restaurada do Cabra Marcado para Morrer foi exibida aqui no Rio (em 2012), eu, Coutinho, Edgar Moura e (o produtor do filme) Vladimir Carvalho participamos de um debate. Havia momentos da conversa em que plateia se divertia muito, porque cada um de nós lembrava de maneira diferente de alguma coisa que tinha acontecido na filmagem, ou mesmo durante a montagem – lembra Escorel.
O DVD Cabra Marcado para Morrer terá lançamento em Porto Alegre no dia 23 de abril, às 20h, na abertura do ciclo de cinema político organizado pela Sala P.F. Gastal e pelo grupo de pesquisa Kinepoliticom, da Famecos/PUCRS. O evento contará com debate dos críticos Enéas de Souza e Milton do Prado. A entrada é franca. No dia 26, às 20h15min, os documentários Sobreviventes da Galileia e A Família de Elizabeth Teixeira serão exibidos na Sessão Aurora, projeto realizado na Sala P.F. Gastal.
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