Em meio às pessoas desabrigadas no Rio Grande do Sul, há profissionais da linha de frente na ajuda humanitária que nem sequer têm tempo para lamentar as próprias perdas. A dura realidade foi notada por servidores de saúde mental de Blumenau enviados à cidade de Estrela para prestar apoio emocional aos colegas de profissão. Por lá, eles encontraram um cenário ainda mais difícil do que já viam pelos noticiários e, apesar de já terem retornado a Santa Catarina, ainda carregam no peito — e nas lembranças — as angústias vividas pelo povo gaúcho.
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Antonio Gomes da Rosa é um dos especialistas que partiu de Blumenau e permaneceu no Rio Grande do Sul por uma semana. Psicólogo e psicoterapeuta, ele atua com estresse pós-traumático em catástrofes desde 2008, quando uma atingiu o Vale do Itajaí. Desde então, já prestou atendimento durante a tragédia da Boate Kiss, também no estado gaúcho, em que 242 pessoas morreram em janeiro de 2013. Em um episódio mais recente, no ataque à creche Cantinho Bom Pastor, quando quatro crianças foram mortas em Blumenau, voltou a se colocar à disposição da comunidade.
Só que nem mesmo a experiência em lidar com esse tipo de situação, tão desoladora e trágica, foi capaz de preparar o psicólogo para o que ainda viria pela frente. Ao chegar no Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul, por exemplo, Antonio se recorda do choque ao avistar um lugar devastado pelas chuvas. Foram 13 horas de viagem no total. Apesar de Estrela não ter registrado mortes, em alguns pontos da cidade, como no bairro Moinhos, não havia restado nada.
— Nos deparamos com uma cidade que foi tomada pela água de uma forma muito agressiva. Então casas de madeira foram deslocadas, casas de alvenaria destruídas, árvores arrancadas pela força da correnteza. Bairros exterminados. Seis abrigos estavam lotados de pessoas. Visitamos esses lugares e demos suporte para equipes que estavam lá, sozinhas, atendendo os moradores. Para que se mantenham resilientes, já que muitos profissionais também eram vítimas, estavam sem casas. Então havia muita angústia — conta o psicólogo.
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Junto com Antonio, também viajaram para o estado vizinho o médico psiquiatra Luigi Fernando Kozenieski e o coordenador do Centro de Atenção Psicossocial Infantil de Blumenau, Jorge Fernando Borges de Moraes. Os três fizeram parte da equipe de saúde mental enviada a uma das cidades adotadas por Blumenau para auxiliar na gestão dos departamentos de saúde e acolher os colegas de profissão. Afinal, é no meio do caos que os trabalhadores do Rio Grande do Sul precisam, mais do que nunca, cumprir a função de ajudar o próximo.
— É uma população extremamente afetada por danos materiais e uma equipe de profissionais da saúde adoecida, afetada pela enchente. Quando você tem uma demanda de uma população que passa por uma tragédia dessas, alguém tem que cuidar delas. E a partir do momento que as pessoas que estão ali para cuidar também estão adoecidas, você tem o primeiro problema. Como uma profissional da saúde falou para a gente: “A gente está aqui para cuidar da população, mas quem é que vai cuidar de nós?” — recorda Luigi.

Segundo o psiquiatra, as pessoas que permaneciam nos abrigos se sentiam deslocadas por conta de tanta perda material. Nas mãos, carregavam apenas roupas e cobertores. Naquele momento, a casa delas tinha se resumido a esses poucos itens e mais um colchão para dormir.
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O atendimento médico era prestado de forma improvisada à população, já que estruturas da saúde, como postos e um centro de assistência social, por exemplo, tinham sido levados pela enchente. Foi ali que os especialistas de Blumenau viram, diante dos próprios olhos, o cenário de parte da tragédia que o Rio Grande do Sul enfrentava.
— Se o município fosse um paciente, eu poderia dizer que atendemos um paciente que ainda estava debaixo d’água ou, pelo menos, na altura da cintura. Quando a gente chegou, não tinha luz, água ou comunicação pelo celular. Aos poucos a gente foi percebendo o cenário como um todo — comenta Luigi.
Sentimento de impotência
Para o coordenador do Caps Infantil de Blumenau, Jorge Fernando, o que se encontrou no estado vizinho foram profissionais da saúde que, mesmo abalados, ainda tentavam unir forças para continuar ajudando o próximo. O único hospital de Estrela funcionava a partir de um gerador e, por isso, atendia somente casos de emergência.
Em meio ao cansaço e anseio de voltar logo para casa, chamaram a atenção do especialista em saúde mental falas recorrentes dos profissionais do Rio Grande do Sul sobre a sensação de impotência. Por mais que estivessem dando tudo de si, para eles ainda não parecia o suficiente.
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Questionamentos e inseguranças sobre o futuro também atormentavam os pensamentos dos servidores. Afinal: o que esperar dos próximos dias? Como manter a esperança diante de tanto sofrimento? E era ali, principalmente, que se via a importância da ida dos especialistas de Blumenau até a cidade gaúcha.
— Eles queriam ajudar mais, mas havia uma sobrecarga emocional e física. Foi um fenômeno muito maior do que se podia imaginar e que causou um impacto muito forte nas pessoas e nos profissionais. Por isso nosso objetivo foi prestar apoio emocional à população, principalmente aos profissionais da saúde, para que eles ficassem mais fortalecidos para acolher quem mais precisa nesse momento — ressalta Jorge Fernando.

À esquerda, Antonio, Jorge Fernando e Luigi, os especialistas de Blumenau que foram até Estrela (Foto: Arquivo pessoal)
O psicólogo Antonio ainda menciona a importância de receber ajuda após vivenciar uma tragédia, evitando que as consequências de determinada situação sejam apenas postergadas. Isso porque, de acordo com ele, esses eventos disruptivos — ou seja, que rompem com a normalidade das pessoas — são considerados traumatogênicos.
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Os efeitos dependem, portanto, de como cada um experienciou aquele momento e de como é a sua estrutura psicológica, podendo desenvolver sintomas de estresse pós-traumático até 10 ou 15 anos após o episódio vivenciado.
— E quanto antes se começa a fazer uma prevenção com encontros de grupos, organizando esse sentimento confuso das pessoas, para que elas possam compreender o tempo do evento, os danos e aonde vão criar estratégias, tanto psicológicas quanto materiais, para dar continuidade à vida — ressalta.
FOTOS: Pilhas de doações revelam o tamanho do abraço de Blumenau ao RS
Esse trabalho ajuda a evitar danos maiores à saúde daqueles que foram impactados pelo acontecimento, como a possibilidade de um infarto, AVC, de desenvolver alcoolismo, depressão, síndrome do pânico ou transtorno de ansiedade generalizada no futuro, segundo Antonio. E, para enfrentar cada um desses obstáculos, todo apoio e cuidado serão bem-vindos a partir de agora.
— Essas cidades terão de passar por cuidados intensivos por meses ou anos até se recuperar totalmente. E nesse processo vão precisar de muita ajuda externa — reforça Luigi.
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E o apoio continua
Segundo a Secretaria de Desenvolvimento Social de Blumenau (Semudes), outros nove profissionais que já atuaram em catástrofes foram enviados para o estado gaúcho na última segunda-feira (20), sendo uma educadora social, um motorista e sete assistentes sociais.
Destes, três estão em Estrela e seis em Lajeado. Por lá, eles buscam identificar demandas e atuar em conjunto com as equipes das cidades no atendimento às famílias atingidas pela enchente. A previsão é que a equipe permaneça no Rio Grande do Sul por cerca de 15 dias.
Saiba como ajudar o estado gaúcho em diferentes regiões de Santa Catarina.
*Sob supervisão de Bianca Bertoli
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