Quem passa pela BR-470 em Rodeio observa o trailer do Dr. Honesto, verde e amarelo, que vende produtos sem atendente. Na pequena urna que recolhe o pagamento dos clientes, além das notas e moedas, papéis que evidenciam ainda mais a essência de muitos brasileiros: são as cartas do Dr. Honesto.
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Renato Lagatta, 59 anos, é a pessoa que tornou o projeto realidade. Diante do primeiro trailer inaugurado há um ano e oito meses, o paulista que mora em SC há três décadas segura alguns papéis nas mãos, cada um com seu tamanho, letras, cores de tinta e erros de português.
São alguns dos bilhetes e cartas que recebe semanalmente pela caixinha montada para os clientes colocarem o pagamento dos quitutes.
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“Venho através desta informar que peguei algumas coisas para o café dos meus filhos, mas não vou roubar, quando eu tiver, prometo devolver. Obrigado”, diz uma delas. Há outras que parabenizam Renato pela iniciativa.
Algumas revelam a incredulidade daqueles que achavam que Dr. Honesto não duraria um mês. E há também muitos que usam o papel como se fosse um recibo, especificando o que pegou e quantos depositou na caixa.
Os corretos predominam
Renato lembra quando a primeira carta chegou. Era começo de 2020 e fazia poucas semanas que o trailer havia sido inaugurado. As pessoas ainda estavam se acostumando com o formato — e questionando muito se daria certo.
A primeira refletiu exatamente esse sentimento. Um caminhoneiro confessou, por escrito, que tinha certeza que o projeto não sobreviveria à desonestidade e maldade humana, mas que passava frequentemente em frente ao trailer e percebia que estava enganado.
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Estava mesmo. Renato já calculou e concluiu que “a gama de honestidade passa de 99%”. Ou seja, é possível ter lucro em um negócio que consiste em acreditar que quem parar e pegar uma pipoca, café, pão, geleia, cocada ou outros itens ali disponibilizados vai pagar a conta mesmo sem ser cobrado.
Com a curiosidade dos motoristas sobre a atração, Renato não demorou a usar um carro velho e danificado como segundo ponto de venda do Dr. Honesto, do outro lado da via, evitando a travessia dos interessados.
“Vou pintar o trailer de verde e amarelo”
O dinheiro que consegue com as vendas cobre parte das contas da casa de apoio que fica atrás do primeiro trailer em Rodeio. É por causa dela que o Dr. Honesto nasceu. Renato comprou o enorme terreno às margens do Km 85,5 há 15 anos. À época, atuava em uma distribuidora de combustíveis e pensava em construir um posto.
Como já fazia trabalhos voluntários em São Paulo, Renato decidiu, enquanto o posto de gasolina não se tornasse realidade, abrir as portas para pessoas em situação de rua. A casa de apoio serve exatamente para o que o nome sugere. No local, quem não tem um teto pode passar a noite em uma das 25 camas, fazer refeições gratuitamente, tomar um banho e se aquecer com cobertores e roupas doadas.
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Em média, o imóvel atende diariamente oito andarilhos. Antes, as doações de alimentos e a participação mais ativa de outros voluntários amenizavam os gastos de Renato com a residência, mas o aumento nos preços nos últimos tempos e a evasão de apoiadores derrubaram a rede de ajuda. Com as faturas sempre atrasadas, o administrador teve de inovar.
Primeiro, tentou vender os pães e geleias feitos pela esposa no próprio carro, circulando pelas ruas. No final do dia, o lucro não era suficiente nem para pagar a gasolina. Foi então que olhou o próprio trailer, em desuso, e lembrou do modelo de comércio existente na Europa.
— Não tinha outro jeito, eu estava tirando dinheiro da minha casa para manter a de apoio. Ou eu fazia algo ou ela fecharia. Pensei: “Vou pintar o trailer de verde e amarelo e ver o que dá” — conta ele.
O lucro com o Dr. Honesto está longe de cobrir os R$ 8 mil que Renato gasta, em média, com as contas do imóvel, mas trouxe fôlego. Ver a transformação na vida de alguns dos abrigados também dá ânimo. Há homens que conseguiram emprego e puderam recomeçar graças à casa de apoio.
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— Já pensei em desistir várias vezes, mas algo me diz: “Continua, continua”.

Tudo que vai… Volta
A lei do retorno parece funcionar no Dr. Honesto. A família de um dos andarilhos atendidos na casa de apoio contatou Renato para agradecer o serviço prestado ao familiar e quis presentear o projeto de alguma forma. Foi assim que surgiu o terceiro ponto de venda em fevereiro deste ano: um trailer às margens da BR-470 em Apiúna, no sentido ao Alto Vale.
A doação do veículo possibilitou atender os pedidos que os caminhoneiros faziam para deixar o Dr. Honesto aberto à noite. Apenas em Apiúna isso acontece, já que fica em uma região mais povoada, perto de uma borracharia aberta 24 horas.
A sugestão foi feita através dos bilhetes que Renato coleciona e que pretende transformar em um mural para ficar exposto dentro do trailer. Uma caixa exclusiva para os recados de clientes também deve ser criada. A pilha de papéis só aumenta, mas não é a única forma de comunicação. Quem encontra o perfil dele nas redes sociais também faz questão de deixar uma mensagem. Depois que apareceu na televisão, Renato diz ter sido bombardeado de carinho — e também de visitas de órgãos fiscalizadores.
— Muitos que moram fora do país mandaram mensagem informando que a imagem do brasileiro melhorou, que mostramos que tem gente honesta aqui. Tem visitantes de países vizinhos que dizem que isso não daria certo na terra deles, ficam impressionados — orgulha-se.
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Perda na BR-470
No começo, só eram vendidos no trailer pipoca, geleia e pão, tudo feito pela esposa de Renato. Aos poucos, novos produtos foram surgindo, como a famosa cocada de um baiano que se dispôs a ajudar o casal, o café, picolé e biscoito. Por enquanto, só é possível pagar com dinheiro, mas o proprietário cogita disponibilizar uma forma mais moderna de cobrança.
Renato vez ou outra leva puxões de orelha da família pela dedicação quase integral ao voluntariado, mas também tem o apoio dela. Pai de quatro filhos, o paulista perdeu um deles em 2005, justamente na
BR-470. Braço direito do pai, o jovem de 21 anos trafegava pela rodovia quando se envolveu em um acidente com caminhão, que destruiu o carro que ele conduzia.
— Para a gente que fica é um sofrimento, mas meu filho teve 21 anos bem vividos. Tenho certeza que ele estaria me ajudando com o Dr. Honesto se estivesse aqui.
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Desonestidade tem um preço
Menos de 1% dos “clientes” que aproveitam a falta de atendente para furtar mercadorias ou dinheiro deu dor de cabeça ao proprietário cerca de 15 vezes. São pessoas que simulam depositar a quantia, mas colocam na urna papel em branco; que enchem o carro de produtos sem pagar por nenhum ou que, mesmo a pé, carregam o que podem para trocar por drogas.
Renato instalou uma câmera de segurança para visualizar todos esses episódios e poder entregar provas no momento de fazer o boletim de
ocorrência. Às vezes, o comportamento social resulta em solução antes da conclusão do inquérito policial.
Já houve criminoso exposto nas redes sociais que precisou deixar a região por ficar conhecido como o “ladrão do Dr. Honesto”. Prova que a proposta deu tão certo que todos se sentem responsáveis pelo sucesso dela. Se o Dr. Honesto vai bem, ainda há esperança.
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