Há 170 anos, “nascia” Joinville, ainda não como uma cidade, mas uma colônia alemã que levava o nome de uma princesa brasileira: Dona Francisca. Até então, as terras onde foi levantada a mais populosa e maior potência econômica de Santa Catarina apareciam no mapa do Brasil como um lugar quase indefinido, uma continuação de São Francisco do Sul.
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Mais de um século e meio depois, o nome de Francisca Carolina de Bragança continua ecoando pelas ruas de Joinville como um grande ícone histórico. Sua infância quase solitária, o casamento por acordo, o exílio e iminência de uma falência, no entanto, são parte de uma história ofuscada pelas homenagens em placas e pelos mitos criados ainda na época da colônia pela propaganda dos vendedores de lotes.
O destino da cidade que tornaria-se Joinville começou a ser traçado em 2 de agosto de 1824. Foi quando nasceu Francisca, a quarta filha do Dom Pedro I com Leopoldina Carolina, a arquiduquesa da Áustria. A história da cidade — e, consequentemente, da formação de toda a região Norte do Estado — poderia ser totalmente diferente, se não fossem os caminhos pelos quais as obrigações de membro da família real levaram Francisca durante sua vida e fizeram com que ela se tornasse a Princesa de Joinville.

A princesa chegava ao mundo apenas dois anos depois da Proclamação da Independência que elevara seu pai a imperador do Brasil, e menos de sete anos antes de Dom Pedro I abdicar do trono e retornar à Europa. Entre estes dois momentos, dona Leopoldina morreu, em dezembro de 1826, e Dom Pedro casou-se com Amélia de Leuchtenberg, princesa da Bavária.
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O fato de ser uma princesa não garantiu a ela nenhum conto de fadas: órfã de mãe e deixada para trás com os irmãos quando o pai abandonou o Brasil, ela cresceu entre empregados e professores no Palácio de São Cristóvão, no Rio de Janeiro — o local que, mais tarde, tornou-se o Museu Nacional e foi destruído por um incêndio em 2018. Dom Pedro I deixou José Bonifácio, que entrou para a história do Brasil como “o Patriarca da Independência”, como tutor das crianças da família real que ficaram no Rio de Janeiro. Além de Francisca, que tinha acabado de completar seis anos, ficaram também as princesas Januária e Paula Mariana e o príncipe Pedro de Alcântara, o futuro Dom Pedro II, último imperador do Brasil.
Januária, a mais velha entre as crianças, tinha nove anos quando o pai partiu. Paula Mariana, que nasceu um ano antes de Francisca, tinha sete anos e era uma criança de saúde frágil, que vivia doente. Todas as meninas estavam ao lado de Pedro quando ele, aos cinco anos, foi apresentado na sacada do palácio imperial aos brasileiros, na aclamação do imperador do Brasil, imagem que foi eternizada em um quadro do francês Jean-Babtiste Debret.
— Todos eles foram criados e educados tanto em etiqueta, quanto com línguas, cultura em geral e tudo mais. E era uma educação muito centrada, muito regrada. Eles não tinham muito com quem brincar a não ser com eles mesmos. Foram apelidados de “a corte mais triste do mundo” — explica o historiador Paulo Rezzuti, autor de 11 livros sobre a história do Brasil e a família real.
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Francisca era considerada a mais espontânea e expansiva entre os irmãos, talvez pelo fato de ser a menina mais nova da família e não ter, a princípio, muitas obrigações com a coroa. A filha mais velha de dom Pedro I e dona Leopoldina, por exemplo, Maria da Glória, havia retornado com o pai para a Europa em uma tentativa de assumir o trono de Portugal, que estava ocupado pelo tio, Dom Miguel. Já Januária chegou a passar até por cerimônia de coroação em uma campanha do Parlamento para transformá-la em regente do Brasil aos 14 anos, enquanto Pedro de Alcântara não alcançava a maioridade para assumir o papel de imperador.
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Solidão e morte
Em janeiro de 1833, quando Francisca ainda não tinha completado nove anos, Paula Mariana faleceu. Pesquisadores que verificaram os sintomas que tiraram a vida da princesinha sugerem que ela tenha contraído meningite ou malária mas, sem que a medicina da época pudesse diagnosticá-la adequadamente, ela passou por tratamentos com sanguessugas, gesso de mostarda e aplicação de ácidos na pele, que faziam a menina gritar de dor no palácio da Quinta da Boa Vista.
A perda da irmã marcou a infância de Francisca, trauma que foi acentuado quando Pedro caiu de cama, com febre, após a morte da princesa Paula. Em uma carta enviada por Januária a Dom Pedro I para anunciar o falecimento da irmã, ela conta sobre os dias em que Pedrinho ficou doente e o temor das meninas de vivenciar mais uma morte na família. Por isso, completava Januária, com a recuperação do irmão, ela e Francisca fizeram uma promessa e ficariam até o aniversário do menino, em dezembro, sem colocar uma gota de açúcar na boca.

Nos anos seguintes, os três irmãos que sobraram no Brasil ficariam ainda mais unidos. A educação rigorosa e extremamente católica da preceptora, Mariana Carlota de Verna Magalhães Coutinho, os levava a ter divertimentos simples — entre eles, inclusive, estava brincar de missa, como conta Paulo Rezzutti.
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— Não tinha muito o que brincar. Tinha um teatrinho em São Cristóvão, tinha bichinhos, patinhos e outros animais na Quinta da Boa Vista. Andar a cavalo era uma coisa de praxe, que todos tinham que aprender. Então, era uma coisa muito reclusa, só entre eles mesmos — detalha o historiador.
Permanecer no Brasil, ao lado de seus irmãos também nascidos em terras tupiniquins, era considerado um trunfo para a família real portuguesa, que esperava que Pedro II e suas irmãs cativassem os brasileiros e garantissem o domínio sobre o país. Para Francisca, era viver em um isolamento forçado em uma espécie de orfanato exclusivo e confortável, no qual tudo era proibido para preservar a imagem da Casa Bragança. Em uma carta enviada após a morte da irmã ao avô, o imperador Francisco I, da Áustria, Francisca escreveu: “Minha mãe e minha irmã estão no céu. O meu pai, a mana mais velha e a mamã (referindo-se à madrasta, Amélia) partiram. E você, vovô, é imperador de um vasto império e nós nunca nem nos vimos. E nós estamos aqui.”
— Ela tinha noção de que o avô nunca ia ter tempo pra eles. Ele era imperador da Áustria. E aí ela mostra, assim, desse jeito fofo, carinhoso, a solidão dessas crianças no Rio de Janeiro — explica a historiadora portuguesa Claudia Witte.
No ano seguinte, em 24 de setembro de 1834, Dom Pedro I morreu em Portugal, após ter abandonado Amélia e a filha recém-nascida na Inglaterra. Seis meses depois, Francisco I morreu em Viena. Aos dez anos, a princesa Francisca Carolina podia dizer-se, definitivamente, uma órfã real.
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Um príncipe navegador e boêmio
Francisca ainda não tinha completado 14 anos quando conheceu seu futuro marido. O príncipe francês François Ferdinand chegou à corte brasileira em 1838 para visitar os primos de segundo grau entre suas expedições, já que fazia parte da marinha da França. Não houve amor à primeira vista. Na verdade, o francês se espantou com a falta de habilidades sociais de Francisca, Januária e Pedrinho e com o marasmo da vida entre os nobres do Brasil. Nem mesmo a beleza da moça, que era relatada por diplomatas e viajantes na época, surpreendeu o jovem príncipe.
O contrário não pode ser dito sobre Francisca e os irmãos: François criou encenações de duelos noturnos e promoveu uma festa no próprio navio para, sob “jurisdição francesa”, subverter as rígidas regras sob as quais o príncipe e as princesas adolescentes viviam. Entre elas, estava a de que Francisca só podia dançar com o irmão e, se ele não estivesse disponível, teria que tirar a irmã Januária para dançar — ou permanecer sentada. O espírito aventureiro do francês tornou-o uma espécie de ídolo para os jovens da sonolenta corte brasileira.
François voltou ao Brasil em 1840, em uma breve parada na expedição à Santa Helena, e decidiu-se pela caçula da família Bragança como esposa. O casamento era uma formalidade e, naquele momento, começava a tornar-se uma emergência para o rei e a rainha da França: o jovem príncipe estava muito envolvido em uma relação nada cristã com uma atriz francesa.
— Na época, principalmente dentro de famílias de dinastias, esses casamentos eram políticos e diplomáticos. Para a França era muito interessante você ter um membro da nobreza, da realeza francesa, casando-se com um membro da realeza brasileira. Isso estreitava laços que podiam ajudar diplomaticamente esses países — explica Rezzutti.
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O casamento ocorreu no Brasil, em 1º de maio de 1843, quando Francisca tinha 19 anos. A cerimônia foi restrita a convidados íntimos, na capela do Palácio de São Cristóvão. Depois, a princesa partiu com François para a Europa, e nunca mais voltou ao Brasil.
Chica conquista a corte européia
A chegada à França não foi nada fácil. Francisca não entendia o idioma, os costumes nem a culinária do novo país. Por sorte, pode encontrar uma aliada na corte francesa: a brasileira Luísa Margarida Portugal e Barros, a condessa de Barral, a acompanhava nos jantares, bailes e eventos culturais e, quando era necessário, colocava-se atrás dela para, disfarçadamente, fazer traduções e dizer o que deveria responder. Os franceses ficaram imediatamente impressionados.
— Não podiam imaginar que uma brasileirinha chegada do outro hemisfério, caída de paraquedas na corte da França, de repente fosse capaz de conhecer tão bem, com tanta precisão e contentar a todos sem ferir a ninguém. Por tudo isso, a gente vê o papel dela. Ela foi se transformando na corte da França numa espécie de grande dama, de referência. Ela era vista como o ideal da princesa — diz o historiador Armando Santos.

Após conquistar a corte europeia, a moça que no Brasil era chamada de “Chica” tornou-se “La Belle Françoise”. No entanto, ela gozou dos privilégios de casar-se com o filho de um rei europeu por menos de cinco anos. Em fevereiro de 1848, operários, artesãos e estudantes uniram-se para promover barricadas no Centro de Paris como forma de protesto pelo direito ao voto e pela proclamação da república, e foram atacados a tiros pela Guarda Nacional. Neste dia, 500 pessoas foram assasinadas, levantando uma insurreição popular tão grande que até os guardas enviados para combatê-la uniram-se aos revoltosos. Após três dias, o rei Luis Filipe I abdicou ao trono.
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A família Orleães exilou-se na Inglaterra, em um palacete no sul do país. Na época, François estava servindo na Argélia, mas, com a notícia, voltou para junto da família. Era hora de definir o futuro: com títulos e propriedades na Europa cassados, o príncipe e a princesa de Joinville precisavam encontrar novas soluções como fonte de renda. E é nesse momento que a fundação de uma nova cidade com este nome começa a se delinear.
O nascimento de Joinville
Entre os dotes de casamento de Francisca Carolina estavam 25 léguas quadradas ao norte de Santa Catarina. Segundo a historiadora catarinense Sandra Guedes, era um “presente” com localização ainda por ser definida pelos proprietários.
— As terras deveriam ser escolhidas entre as áreas devolutas, quer dizer, terras que fossem pertencentes à coroa. Aqui onde hoje é Joinville, naquela época já existiam várias fazendas e pessoas que eram originárias de São Francisco do Sul — explica a historiadora.
Na época, a migração alemã intercontinental já tinha virado um bom negócio. Somente entre 1844 e 1847, cerca de 321 mil pessoas deixaram a região da Alemanha para viver nas Américas, e a administração de Hamburgo queria ampliar os acordos comerciais com o Brasil. A criação de colônias alemãs no “Novo Mundo” facilitaria a exploração dos recursos naturais. Para estas transações, surgiram dezenas de companhias privadas, entre elas, a Sociedade Colonizadora de Hamburgo. A negociação com o Império, no entanto, não era fácil: os alemães queriam isenções de impostos e gratificações para os novos moradores, entre outros benefícios; propostas que o governo brasileiro nem aceitava analisar. Foi a influência de François-Ferdinand, cunhado do imperador Dom Pedro II, que facilitou os acordos que garantir os lucros esperados pelos empresários da imigração, já que a possibilidade de fundação de colônias alemãs no sul do Brasil garantiriam também o conforto econômico da princesa Francisca de Joinville.
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A chegada dos primeiros imigrantes marca o dia da fundação da colônia: 9 de março de 1851. Aproveitando a relação da realeza com as terras catarinenses, criou-se o mito de que, um dia, Francisca e François voltariam ao Brasil para viver na cidade criada a partir da colônia que levava o nome da princesa.
— A Sociedade Colonizadora de Hamburgo e os agentes que trabalhavam para ela buscando recrutar colonos na Europa divulgavam essa informação, dizendo que o príncipe e a princesa tinham reservado terras no centro da colônia e que lá poderiam estabelecer residência. Essa é uma expectativa que ficou nos colonos por causa dessa propaganda, mas não existe indício efetivo de que eles viriam ou que tinham esse interesse — detalha o historiador econômico Luiz Ferreira.

Os últimos anos de Francisca do Brasil
François-Ferdinand e Francisca Carolina tiveram três filhos: Francisca de Orléans, a duquesa de Chartres, em 1844; Pedro de Orléans, o duque de Penthièvre, em 1845; e Maria Leopoldina de Orléans, em 1849. Os dois mais velhos viveram até os 81 e 74 anos, respectivamente. Já Maria Leopoldina morreu poucas horas após o nascimento.
Francisca manteve, ao longo da vida, uma intensa troca de correspondências com Dom Pedro II. Em suas cartas, ela orientava o irmão a impedir com severidade o fortalecimento do partido republicano no Brasil. Ela ainda enviou dois príncipes europeus, Gastão de Orléans e Luís Augusto de Saxe-Coburgo-Gota, para se casarem com as filhas de Pedro II, a princesa Isabel e a princesa Leopoldina.
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Francisca morreu em 1898, em Paris, aos 73 anos. François viveu por mais dois anos, e faleceu também em Paris, por pneumonia. Ela foi sepultada na cripta dos Orléans, na capela real de Dreux, na França, e até hoje seu túmulo é preservado. Em Joinville, os moradores podem encontrar-se com a princesa pelas ruas, como na via que leva seu nome e que transformasse na Serra Dona Francisca, pelas placas de comércios que a homenageiam, e pelo busto produzido pelo artista alemão Fritz Alt em 1925, e que tem sua réplica na rua das Palmeiras, em frente ao Museu Nacional de Imigração e Colonização.
*Com a colaboração do repórter André Lux, da NSC TV.