Dois lançamentos simultâneos reapresentam a escrita cheia de arestas de um dos mais significativos nomes da literatura latinoamericana:o chileno José Donoso. O Lugar sem Limites e O Obsceno Pássaro da Noite comprovam que Donoso (1924 – 1996) não era exatamente um realista mágico, e sim um tecelão de pesadelos.

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Hoje parcialmente eclipsado pelo sucesso de seus amigos García Márquez e Vargas Llosa, Donoso foi um nome fundamental da geração que se consagrou em fins dos anos 1960 e início dos 1970 com o rótulo de “boom latino-americano”, e que também incluía o mexicano Carlos Fuentes e o argentino Ernesto Sábato. Vargas Llosa o definiu em um ensaio de 1996 (incluído na coletânea Sabres e Utopias) como “o mais literário de todos os escritores que conheci” – tanto pela obra quanto pelo fato de que, segundo Llosa, Donoso parecia um personagem de romance inglês.

O Obscuro Pássaro da Noite é, dos livros de Donoso, o mais traduzido. Já havia sido publicado no Brasil nos anos 1970, pela editora Francisco Alves. Agora, ganha nova tradução, de Heloisa Jahn, também responsável pela versão de O Lugar sem Limites. Numa prova da ambição da obra, mesmo resumi-la é tarefa complexa. O centro da narrativa tortuosa é um casarão decadente, outrora uma capelania na qual uma congregação católica reunia religiosos para retiros e exercícios espirituais.

Prestes a ser demolida,a construção está ocupada por um reduzido grupo de freiras, por algumas meninas órfãs e por muitas velhas – antigas criadas da burguesia chilena enviadas para o local para viver em estado de indigência. Também mora lá o narrador do livro, Mudinho, misto de zelador e assistente, que passa a maior parte de seu tempo trancando portas e acessos para isolar partes do labiríntico casarão em risco de desabamento. A tarefa repetitiva dialoga com o mito chileno do Imbuche, central na narrativa: um monstro com o rosto voltado para trás e todos os orifícios do corpo (todos mesmo) costurados por bruxas.

Donoso é hábil em lidar com o grotesco. Talvez por isso questões do corpo sejam tão presentes na obra: a degradação física das velhas no asilo, a estranhamente longa gravidez de uma das jovens órfãs, a própria necessidade de Mudinho “desobstruir” zonas obscuras de seu passado para tomar posse dos mistérios de sua identidade, que está ligada ao tempo em que o homem foi secretário de uma família oligárquica na qual um pai tentava esconder do mundo um filho deformado.

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Também o corpo e suas transformações estão no centro de O Lugar sem Limites, adaptado para o cinema em 1978 pelo mexicano Arturo Ripstein. A narradora, Manuela, é um travesti que mantém, com a filha, um bordel em uma localidade fictícia do interior do Chile. Por meio da voz do personagem, que reflete sobre as relações abusivas da pequena comunidade e sobre seu próprio e indesejado envelhecimento, Donoso tece uma narrativa ao mesmo tempo delicada e cheia de nós perturbadores.

O OBSCENO PÁSSARO DA NOITE

José Donoso

Romance. Tradução de Heloisa Jahn. Editora Benvirá, 488 páginas, R$ 49,90.

O LUGAR SEM LIMITES

José Donoso

Romance. Tradução de Heloisa Jahn. CosacNaify, 160 páginas, R$ 29,90.