Quando o carteiro chegou, o cachorro latiu pelo simples fato de que o carteiro chegara. E não há motivo para tanto latido, porque o cachorro sequer conhecia o homem de amarelo e azul que descia da bicicleta, sequer sabia que novidades trazia no envelope sobrescrito que sacara da bolsa. Talvez seja da genética de todo cachorro latir para carteiro, e é da educação daquele cachorro calar-se quando a dona lhe manda calar. Deu um breve gemido e colou a barriga no cimento frio do quintal enquanto via Fátima receber o envelope e seu rosto se desconfigurar por algum sentimento que ele não conseguiu saber se era bom ou ruim. Acompanhou a dona para dentro de casa, em passos muito lentos porque ela não tirava os olhos do papel.

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Do papel saiu outro papel e nesse papel havia algo que parecia maior ainda que o papel, porque não cabia no coração de Fátima.¿Oi, mãe.Eu estou bem. Me adaptando. Já fiz uns amigos, que, assim como eu, erraram. E assim como eu, não são do mal. Só erraram. Não posso ainda, porque tenho medo, andar solto pelo pátio. Nem todos que estão aqui são como eu, alguns parecem ter sangue nos olhos, um peito carregado de ódio de tudo que se move. Não posso olhar direto nos olhos deles, é agressão. Os amigos que fiz me orientam para que eu não tenha problemas. Ontem mataram um, hoje as coisas parecem mais calmas. No fundo, aqui é como aí, com a diferença de que aqui a gente consegue identificar as intenções das pessoas e se proteger. A polícia também funciona como aí, tem policiais bons e ruins, e os ruins alimentam o crime. Semana que vem já posso receber visita, já posso receber a senhora. Estou preparado para o seu olhar de reprovação, mas sei que ele virá carregado de amor também, e é isso que mais importa para mim, hoje. Te espero. Fica com Deus¿.

O cachorro ao pé de Fátima lambia o rio de lágrimas que desabava de seus olhos, depois levantou-se e foi ao quintal, olhou para a rua e sabia de uma coisa: latiria com mais raiva e vontade quando voltasse aquele homem que fez sua dona chorar como nunca chorou.

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