O advogado e contador José Rubens Cardoso mantém com amigos em Canoas uma foto em que Luiz Felipe Scolari aparece posado no time amador do São Cristóvão com cara de garoto, aos 18 anos, ainda sem a autoridade do bigode. É de 1967 o registro, uma preciosidade, exclamam. Talvez seja uma das últimas imagens sem a marca registrada abaixo do nariz.

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Depois disso, o início de Felipão como jogador profissional, no Aimoré, de São Leopoldo, coincidiu com o cultivo de um basto bigode – até o modelo mais brando de hoje.

– Repara no calção acima da cintura e nos braços cruzados, é igualzinho como ele faz ainda hoje – chama atenção José Rubens, o lateral-direito da época dos primeiros anos de bola do atual técnico da Seleção na várzea de Canoas, há cerca de 50 anos.

Também o ex-zagueiro Cedenir anda garboso em Porto Alegre com uma pasta de plástico repleta de fotos amareladas e recortes de jornais dos anos 1970 que comprovam sua parceria com Luiz Felipe na zaga do Caxias. Seu orgulho é o mesmo do aposentado Remi Oliveira, o Gão, que diz ser testemunha do momento em que Scolari calçou a primeira chuteira no vestiário de madeira do São Cristóvão.

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Quem jogou com Felipão na várzea (1962-66), Aimoré (1966-72), Caxias (1973-79), Juventude (1980), Novo Hamburgo (1980) e CSA, de Alagoas, (1981) se gaba da convivência, embora há muito não troquem uma palavra com o antigo companheiro, hoje famoso.

No São Cristóvão: o quarto em pé, da esquerda para a direita

Foto: Arquivo Pessoal

Quase todos atestam: o zagueirão era impiedoso com os adversários e duro com a bola, líder entre os colegas, capitão por onde passou, pão-duro irremediável, gozador, obstinado capaz de jogar, estudar, estagiar e se formar ao mesmo tempo e, além disso, um invencível no carteado.

– Nunca vi o Felipe perder um jogo de caxeta. A gente colocava alguém em cima dele, ele não roubava e batia tudo – espanta-se até hoje Osmar, ex-centromédio do Caxias e Grêmio.

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Vejamos os casos. Felipão começou como ponta direito no São Cristóvão, até o primeiro técnico, Florentino Mattos, o Mimo, mandá-lo para a zaga. Trabalhava como office-boy no posto de gasolina do tio Alcides Scolari e do pai, Benjamim. Alto e forte, logo criou fama de rebatedor e foi fazer teste nos Eucaliptos com o técnico Abílio dos Reis, do Inter.

Aprovado, assinaria por 80 cruzeiros mais estudos. Luiz Felipe recusou. Ganhava 190 cruzeiros no posto da família e fazia contabilidade no Ensino Médio. Voltou ao São Cristóvão.

Aos 18 anos, fez teste no Aimoré. Passou. Mas não seria contratado. Ainda assim ele continuou no clube. Treinava e pagava do próprio bolso as despesas na concentração e nas viagens com a delegação. Com o tempo, ganhou uma chance na lateral direita, assinou contrato, tomou conta da caixinha e conquistou vaga na zaga do time do lendário Toruca.

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Com a camisa do Caxias, levanta Batista com um carrinho

Foto: Reprodução

– Virou capitão do Aimoré pouco depois dos 20 anos, já com essa mania de controlar tudo dentro de campo – lembra o aposentado Adelmo Schmidt, companheiro no Cristo Rei.

Domingos de folga no Aimoré, Luiz Felipe, de bigode inaugurado, e faminto de bola, reforçava as hostes do São Cristóvão. Jogava de centroavante. Um dia marcou oito gols. Também fazia bicos no Montenegro e no Santa Cruz, de Taquara. Vinham buscá-lo de Aero-Willys. Por essa época comprou o Fusca 1300 azul que o acompanhou por anos.

– Ele ganhava um dinheirinho quando jogava em Taquara – afirma Adelmo.

Sua maior vítima à época era Bráulio, do Inter. O “garoto de ouro” tinha o hábito de aplicar humilhante chapéu sobre o adversário. Diante de Felipão, ele nem se atrevia. O zagueirão o alertava antes:

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– Não venha dar balãozinho que eu vou te quebrar.

No final de 1972, o atacante Maurício negociava a transferência do Aimoré para o Caxias. Solicitou a ajuda do letrado Luiz Felipe, que já cursava Educação Física no Ipa, em Porto Alegre. Felipão fez o papel de procurador do colega e, de quebra, também foi jogar no Caxias. Chegou como capitão.

Em partida contra o Grêmio, também com a camisa do Caxias

Foto: Banco de Dados / Agência RBS

Passadas as primeiras roscas no Estádio Centenário, o zagueiro tratou de se adaptar ao estilo refinado dos médios Osmar, Clóvis e Jurandir.

– Eu dizia: gringo, toma a bola e entrega para nós. Em seguida parou com os chutões – conta Osmar.

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E o time do Caxias se afinou ainda mais, com Cedenir, o central ao lado de Luiz Felipe na zaga. Depois, chegou Bebeto, Luiz Freire, sob a orientação do técnico Marco Eugênio.

– Quando cheguei ao Caxias, o Felipão já não era o grosso que dizem por aí – defende Cedenir.

Mas não se tornou um santo. Ele se encarregava de Escurinho, meia-atacante do Inter que marcava gols de cabeça. Atirava-se sobre o atacante e o agarrava. Ainda assim Escuro marcou três vezes pelo alto. O goleiro Bagatini cansava de soquear a cabeça de Felipão porque ele subia em todas.

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Antes de um Ca-Ju de 1976, Felipão apareceu no Centenário com o tornozelo inchado. Não havia como recuperar-se a tempo de jogar no domingo. À noite, na concentração, ele foi flagrado com o pé dentro de um balde com infusão de chá. Passou dois dias com os pés cobertos por uma bolsa de ervas. Os jogadores quiseram saber do que se tratava aquela loucura:

– É um chá, catinga-de-mulata, receita da minha avó. Domingo eu vou jogar.

Na hora do clássico, Felipão puxou a fila do Caxias. Na etapa final, ele incitou Cedenir:

– Vamos lá (na área do adversário), Ceda. Vamos matar.

Ao lado deles, o atacante Plein, do Juventude, ameaçou:

– Se vocês forem lá, eu vou pegar o rebote e fazer o gol.

Cedenir, mais baixo, pulava no primeiro pau. Felipão cabeceava no segundo, e ali saiu o gol.

– Viu, Plein, como é que se faz?

O curso de Educação Física foi concluído a muito custo, em 1974. Após o treino, saía para dar aula em estágio e passava pelo bar, os colegas jogavam carta e tomavam cerveja. Ele voltava, o grupo estava lá. Depois, seguia para a faculdade e o pessoal da carpeta continuava lá. Capitão do grupo, Felipe alertava quando a direção se aborrecia.

– Estão de olho em vocês, peguem leve.