Inferno no paraíso é o que vivem os catarinenses desde o início de novembro. Foram 29 atentados a ônibus até a manhã de sábado, 14 cidades com registro de ataques, incluindo disparos contra unidades policiais, e três mortes.
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O cenário não é muito diferente de São Paulo, onde 96 policiais e três agentes penitenciários foram assassinados este ano (contra metade deste número, em 2011), mais de uma dezena de ônibus incendiados e cerca de 350 pessoas mortas pelas polícias – algumas vezes, como represália pela morte de agentes. Em ambos os Estados, a onda de ataques é planejada e ordenada de dentro das cadeias. Em Santa Catarina, pelo Primeiro Grupo Catarinense. Em São Paulo, pelo Primeiro Comando da Capital (PCC).
Enquanto isso, no Rio Grande do Sul a epidemia de ataques contra autoridades e bens coletivos não chegou. Até quando reinará a calmaria? ZH ouviu policiais, promotores, juízes e acadêmicos em segurança pública. Otimistas, todos acreditam que a tendência é de que os atentados não ocorram em território gaúcho. Possibilidade sempre existe, mas é considerada pequena.
Por quê?
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A realidade gaúcha, convergem, é muito diferente da catarinense e paulista. A começar pela inexistência de presos amontoados em delegacias, foco permanente de rebeliões. Outro fator é a existência de quatro grandes facções criminais nos presídios gaúchos, enquanto em Santa Catarina e São Paulo existe apenas um grande grupo dominante.
– Quando uma facção reina, se ela decide “virar” a cadeia (amotinar os presos), é mais difícil segurar. Quando tem quatro, o administrador age como Maquiavel: divide para reinar – explica um experiente promotor criminal.
PCC já assediou facções gaúchas
Um relatório do Conselho Nacional de Justiça corrobora essa afirmação. Elaborado no ano passado, o documento constata que o próprio Estado do Rio Grande do Sul chegou a fomentar o fortalecimento de certas facções para obter o equilíbrio entre elas.
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“Com o equilíbrio, esperava-se obter mais tranquilidade e evitar mortes e luzes sobre o sistema. O Estado divide as unidades prisionais em galerias e permite o domínio delas pelas facções… As mortes deixam de ocorrer dentro das unidades porque as facções têm forças semelhantes, mas o preso que entra em uma galeria dominada por uma facção é filiado compulsoriamente à respectiva” , relata o CNJ.
O documento ressalva que essa forma de organização da administração penitenciária tem reflexos na criminalidade, porque os presos “filiados” a uma facção no período de cumprimento de pena são obrigados a ficar a serviço dela quando nos regimes semiaberto e aberto e no livramento condicional. Isso explica os elevados níveis de reincidência e fugas nesses regimes.
O juiz Sidinei Brzuska, da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre, foi sintético ao analisar o fenômeno.
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– A facção é muito importante para o Estado. É uma terceirização do sistema. Tu entregas para eles resolverem na galeria. Mas o Estado nunca vai admitir isso – resumiu, em frase reproduzida no documento do CNJ.
Não que o Estado esteja livre do assédio de criminosos forasteiros. O PCC tentou cooptar facções gaúchas. Já mandou droga, em consignação, para a facção Os Manos. Mas enfrenta, hoje, oposição dos Bala na Cara, grupo em ascensão no sistema prisional gaúcho.
Rodrigo Azevedo, professor da PUCRS e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, concorda com o juiz e enfatiza que as prisões se tornaram polo de articulação de crimes em decorrência do crescimento da população carcerária a partir dos anos 90, sempre em ambiente precário. O resultado é a proliferação de grupos articulados dentro e fora dos presídios, em torno de uma economia criminal mais organizada.
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Monopólio de um grupo criminoso
Azevedo considera fundamental investir na melhoria do sistema prisional. Também é importante garantir mais investigação criminal, com prioridade para o esclarecimento dos homicídios, sem esquecer de controles sobre a violência policial, para evitar a espiral de violência
O principal erro das autoridades catarinenses e paulistas, segundo os especialistas ouvidos por ZH, seria o de permitir o monopólio de um grupo criminoso dentro dos presídios. O outro, tão grave quanto este, foi a lenta apuração de crimes cometidos por agentes do Estado – como torturas e execuções. São receitas para garantir rebeldia permanente dos aprisionados.
O que distingue o RS dos Estados mais atingidos por ondas de ataques criminosos:
– Não tem detentos trancafiados em delegacias de polícia, algo que ocorre em Santa Catarina e São Paulo. Esse tipo de prisão provisória, em locais bem precários, desumaniza mais a condição do preso.
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– O Estado não tem tradição de execuções de criminosos por parte da polícia (como São Paulo). E denúncias de torturas nas cadeias (como as que foram estopim da revolta de criminosos em Santa Catarina) costumam ser investigadas e punidas.
– Com as duas principais cadeias comandadas pela Polícia Militar, a hierarquia e a disciplina tornam as regras simples: ninguém foge. Em contrapartida, as facções se encarregam da “disciplina” interna dos presos.
– Juízes e promotores gaúchos visitam as cadeias diariamente. E dialogam face a face com os presos. Em São Paulo, persiste o modelo antigo, do preso ser levado para audiência com o magistrado. Promotores paulistas, via de regra, são vistos como acusadores e não interlocutores pelos presidiários.
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– Existem pelo menos quatro facções nos presídios na Grande Porto Alegre. São elas Unidos pela Paz, Os Abertos (voltadas ao tráfico), Os Manos e a ascendente Bala na Cara (voltadas para assaltos). As autoridades jogam com essa divisão, para exercer o controle das prisões.
– As facções da capital gaúcha têm pouca influência fora da Região Metropolitana, diferentemente de Santa Catarina e São Paulo, onde a facção dominante é forte nas cidades-polo.
– As facções gaúchas sabem que baderna e terrorismo atrapalham os negócios. Estão interessadas muito mais em vender drogas do que em pregar ideologias, como fazem o PCC paulista e o PGC catarinense.
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* francisco.amorim@zerohora.com.br ; humberto.trezzi@zerohora.com.br