São 15h de uma quarta-feira e o músico e DJ Jean Mafra, 41 anos, encara uma pia cheia de louça no apartamento onde mora com a esposa e as duas filhas do casal em Barreiros, São José, na Grande Florianópolis. O dia começou com ele servindo pão com manteiga e suco natural de laranja a Ana Beatriz, de 5 anos. Terminado o café da manhã, a televisão e o computador foram ligados. Um, para a criança assistir a desenhos animados. Outro, para o adulto agilizar as festas e eventos com que ganha a vida. Não por muito tempo, pois logo seria hora de preparar o almoço dela e aprontá-la para levá-la à escola de ônibus. A mãe da menina? Até duas semanas atrás saía cedinho para dar aulas de língua portuguesa e literatura, agora acabou de parir Frida.
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Resguardadas as diferenças conforme as configurações de cada lar, a rotina de Mafra é comum a 85% dos homens residentes em Santa Catarina. O Estado registra a maior taxa do país de homens que realizaram afazeres em casa (ligeiramente à frente de Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul) em 2017, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) – Outras Formas de Trabalho, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As catarinenses ainda se ocupam mais com a lida doméstica (94,1%, empatadas com gaúchas e atrás das sul-mato-grossenses), mas a participação masculina aumentou em quase 7% em relação a 2016.
– Mesmo que eu batesse ponto em uma função formal das 8h às 18h, minha formação não permitiria que eu não ajudasse. Ou melhor, dividisse as tarefas – diz ele, corrigindo o ato falho cometido por nove entre 10 pessoas, não importa o sexo.
Órfão de pai aos dois anos, Mafra cresceu com a mãe, duas irmãs mais novas e uma avó “bastante presente” em Marabá (PA). Com tanta mulher ao redor, nunca precisou guardar os brinquedos, guardar as roupas ou arrumar a cama. Adolescente, já morando com a família em Florianópolis desde 1992, começou a se ligar que não fazer nada não significava que não houvesse nada a ser feito: alguém fazia por ele. No entanto, foi somente quando casou com Ana Carina, em 2004, que percebeu de fato que a vida de regalia pertencia ao passado. Já desistira do curso de Letras na UFSC para investir na vocação artística. Com a demissão como contador de histórias para crianças, o emprego com que se sustentava, nem o argumento de que faria o papel de “macho provedor” ele poderia usar.
– Era injusto ela chegar do trampo e ter que fazer comida para mim. O dono de casa era eu.
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E continua sendo – ainda mais com a recém-nascida exigindo dedicação total de Ana Carina. Com a mamãe se recuperando da cesariana, o músico incorporou a troca de fraldas às obrigações cotidianas. Além de cuidar das pequenas, a lista inclui tirar o lixo e outras responsabilidades diárias impossíveis de serem deixadas para a faxineira que vai uma vez por semana. Se a coisa aperta, Camila, a filha de 21 anos fruto de um relacionamento anterior de Mafra, é convocada para ajudar com as irmãzinhas, assim como as avós, que moram na redondeza. No fogão, porém, ninguém mexe. Ele descobriu que adora cozinhar e, garante, faz um arroz com brócolis ou legumes com molho branco que elas comem e pedem bis. A revelação de seus dotes culinários leva a esposa, que estava no quarto amamentando Frida, a se levantar e ir até a sala. Não para desmenti-lo – como insinuava o silêncio com que foi recebida –, e sim para salientar a seriedade do tema abordado, por mais prosaicas que sejam as atribuições envolvidas.
– É um caminho sem volta. Depois que começa a dividir as tarefas, não tem como retroceder. Tem mais a ver com parceria, cumplicidade, do que com necessidade – afirma a professora no ensino fundamental de três colégios.
O maridão concorda. E ai dele se não! Brincadeira: Mafra conta que passou a conviver mais com a(s) filha(s) e nunca perdeu nenhum compromisso por estar com ela(s). No ensaio de um show com a Camerata Florianópolis, lá estava ele com Ana Beatriz, então bebê, no sling (tira de pano que carrega a criança rente ao corpo do adulto). Nos preparativos de um espetáculo de dança do qual assinou a trilha sonora, a garotinha não apenas foi como “deu ideias e tudo”. O desafio atual do pai coruja é aprender a fazer tranças na menina. Enquanto não domina a técnica, defende-se com um coque “meio do lado da cabeça, que ela curte demais”. Quando for a vez de Frida, ele será especialista na função.
Esparramado no sofá, com o sapato largado no chão da sala e lata de cerveja na mão, à espera de que a mulher lhe traga um tira-gosto para beliscar acompanhando o futebol na TV, o estereótipo do macho-alfa pode desdenhar do exemplo de Jean Mafra. Autônomo, com uma agenda mais flexível, o músico teria mais facilidade para conciliar a atividade profissional com a manutenção de uma casa – ao contrário dele, um assalariado que chega da firma esgotado, sem o menor ânimo para fritar um bolinho, que dirá se dispor a pendurar a roupa no varal. Afinal, a esposa, embora tenha a mesma rotina estafante, “está acostumada” com a jornada extra.
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A má notícia para esse cidadão de bem completamente estagnado no tempo (para dizer o mínimo) é que brandir a carteira de trabalho assinada como pretexto para achar que já faz muito ao lavar a cueca durante o banho não engana mais ninguém. É lógico que entre os 2,63 milhões de homens catarinenses que realizaram afazeres domésticos em 2017 segundo a PNAD – Contínua, encontram-se aqueles que dão expediente em dois períodos na rua, em horários fixos, e não viram paxás em casa. Como o publicitário Guilherme Campagner Carvalho, 36 anos, oito dos quais vivendo em regime de união estável com a administradora Cátia.
– A gente sempre dividiu tarefas. Ainda mais agora, com ela estudando à noite três vezes por semana – diz.
Ambos trabalham fora das 9h às 19h e, desde março, às segundas, terças e quartas ela emenda a função de atendimento em uma agência de publicidade (que não é a mesma do marido) com um curso de massoterapia até as 22h. Para que os dois tenham direito ao ócio, foram obrigados a estabelecer algumas regras, aproveitando as aptidões de cada um. Carvalho é mais organizado, por isso tira a louça do escorredor, recolhe camisas e casacos pendurados na cadeira, coloca os objetos nos seus lugares – “menos no quarto de hóspedes onde ela guarda suas roupas, aí não me meto muito, nem no banheiro dela”, esquiva-se.
Também lava a louça e a roupa (na máquina) e se encarrega do jantar. No menu, nada muito requintado: porções que preparam aos domingos, como a carne moída com molho de tomate (comprado pronto) que ele faz. Ou o que julga ser sua especialidade, uma mistura de ovo, farinha de amêndoa (ou de castanha ou linhaça) e banana que, após dois minutos no microondas chama de “bolinho fit”.
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– Outra coisa que faço é trocar a caixa de areia, cortas as unhas e escovar as gatas – completa, referindo-se às “filhas” Íris e Dália, duas irmãs que adotaram com um ano em uma associação de proteção animal.
Cátia gosta que o apartamento em que moram no Córrego Grande, em Florianópolis, esteja sempre limpo. Como o marido “não tem muito jeito” com a faxina mais pesada, é ela que põe a mão na massa. Geralmente, sem a presença dele, que para “não atrapalhar” aproveita para ir ao supermercado.
– Ele é mais sutil, já eu gosto de ver espuma, água, sabão, os móveis todos de perna para cima – entrega a esposa.
Números e números
Tanto Carvalho quanto Mafra enquadram-se na faixa etária – de 25 a 49 anos – dos homens com maior participação nas tarefas de casa em Santa Catarina, 88,4% de acordo com a pesquisa do IBGE. São representantes de uma geração que não está levantando bandeira alguma nem discutindo gênero ao cozinhar, lavar louça ou arrumar a cama: simplesmente não cogitam se comportar de outra forma; é natural. Está subentendido que, ao dividir a casa com alguém, irão dividir também as responsabilidades que a manutenção dessa casa implica. Ninguém é empregado de ninguém.
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Filho de um militar e de uma dentista, o publicitário de Santiago (RS) foi criado em um lar no qual havia uma faxineira, mas os pais se revezavam no que sobrava para fazer, conta. Ele e o irmão também eram chamados a ajudar com frequência, o que reconhece ter contribuído muito para que, ao atingir a maturidade, tivesse plena consciência de que viver com outra(s) pessoa(s) requer mais do que rachar as despesas ou compartilhar os lençóis. No entanto, apesar do avanço registrado nos últimos levantamentos, ainda está muito sedimentada a crença de que cuidar da casa é “coisa de mulher”.
As brasileiras dedicam 20,9 horas semanais aos afazeres domésticos, o dobro do tempo que eles reservam a tais funções, aponta a PNAD. Exceto na execução de pequenos reparos ou manutenção do domicílio, automóvel, eletrodoméstico ou outros equipamentos, em que perdem por 63,1% a 34%, elas aparecem na frente dos homens em todos os tipos de tarefas. As maiores diferenças ocorrem no preparo de alimentos – 95,6% contra 59,8% – e na limpeza de roupas e calçados – 90,7% ante 56%.
Na avaliação da analista de Trabalho e Rendimento do IBGE Alessandra Brito, os números mostram que buscar o equilíbrio entre os sexos na lida em casa deve ser uma preocupação constante em uma sociedade que se pretende igualitária. O caminho para isso passa por uma mudança de mentalidade que terá respaldo cada vez maior à medida que as gerações vão se sucedendo. Não é preciso saber fazer crochê, o ápice do homem prendado simbolizado pelo ator catarinense Rodrigo Hilbert. Mas compreender que não está escrito em nenhum lugar que cozinhar, lavar ou limpar são atribuições exclusivas da mulher já ajuda.
Feminista, não: pró-feminino
Dividir as tarefas domésticas é só um aspecto primário das novas masculinidades que afloram na sociedade contemporânea. Homem não chora, homem não liga para a aparência, homem não acha homem bonito e tantos outros clichês que poderiam ter saído da boca de Zeca Bordoada – personagem interpretado pelo finado Guilherme Karan no quadro TV Macho, do programa humorístico TV Pirata, na década de 1980 – hoje só valem como piada de gosto duvidoso. Não, não se trata de enaltecer o modelo “metrossexual”, termo surgido na virada dos anos 2000 que virou sinônimo de cara que “passa creminho”. E sim de perceber que não há mais espaço para posturas arcaicas em uma relação a dois.
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É com essa finalidade que o psicólogo Fabio Veronesi está lançando o livro Pró-Feminino – Como o Machismo Prejudica os Homens, resultado de 15 anos de pesquisa no assunto. Ele vê a participação masculina nos afazeres de casa como uma atitude que ajuda mais o próprio homem do que a mulher que estaria sendo “ajudada”. A tese é a seguinte: há um século, os homens dominavam a esfera social; a mulher, a esfera doméstica; hoje, a mulher domina também a social – mas o homem não conquistou a competência na doméstica. A moça que passava da mão (tutela) do pai para a do marido é aconselhada pela família a estudar, ter alguma profissão, ganhar o seu dinheiro para “não depender de homem nenhum”.
Enquanto isso, no reino da testosterona, nada mudou. O homem ainda sai da barra da saia da mãe para a da esposa, porque não é criado para se virar minimamente nas necessidades mais básicas.
– Toda mãe que criou o filho dando mais “moleza” a ele do que à filha, protegendo-o, prendendo esse menino ao não investir na autonomia dele, a não ensiná-lo a fazer essas tarefas, de certa forma criou um machistinha. O homem pró-feminino vai entender isso como uma desvantagem, como um processo que o submete – explica Veronesi.
Ele ressalta, porém, que ensinar o filho a não ser machista não é botá-lo para brincar de boneca. Na ótica do paulista radicado em Florianópolis, divorciado, pai de duas meninas e um menino, primeiro é importante estabelecer bem o seu gênero, para depois compreender o(s) outro(s).
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– Um homem que entenda melhor suas emoções não precisa ser afetado. O feminino do homem não é uma caricatura de mulher. Se a gente investir no nosso feminino, nosso masculino vai ficar melhor.
O psicólogo cita Freud e a psicanálise para fundamentar o raciocínio: todos temos os dois sexos, e o que chamamos de masculino ou feminino é apenas a preponderância de um deles. O machismo reprime a mulher, mas também o lado feminino do homem, através do qual ele ama. Logo, quem não lida bem com seu próprio feminino tem muita dificuldade em se entregar ao amor e à vulnerabilidade inerente a esse amor.
– Quanto melhor a gente conseguir lidar com essa sensação de fragilidade que é inerente ao amor, mais a gente vai ter capacidade de amar.
Depois dos abalos provocados pela revolução feminista provocou na velha edificação machista, indica Veronesi, a masculinidade do homem só irá se reerguer de mãos dadas com sua feminilidade. Ou, como já cantava Gilberto Gil em 1979 em Superhomem – A Canção: “Um dia, vivi a ilusão de que ser homem bastaria, que o mundo masculino tudo me daria do que eu quisesse ter / Que nada, minha porção mulher, que até então se resguardara, é a porção melhor que trago em mim agora, é que me faz viver”.
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