Em um verso de No Church in the Wild, o rapper Jay-Z descarta o Espírito Santo e oferece sua própria versão da santíssima trindade: ele próprio e mais Kanye West e Jesus Cristo. A música foi lançada em 2011, no álbum colaborativo batizado sugestivamente de Watch the Throne, no qual as duas estrelas dividiram a coroa do rap. No ano seguinte, nascia um candidato forte o suficiente para deixar a dupla desconfortável no trono: Kendrick Lamar, hoje com 27 anos, explodiu com Good Kid, M.A.A.D City – o disco, seu primeiro numa grande gravadora, escalou as listas de melhores do ano e já é considerado o segundo da década pelo portal Pitchfork, logo atrás de My Beautiful Dark Twisted Fantasy, de Kanye West. Para a NME, é o oitavo melhor lançamento em cinco anos.
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Seu sucessor, lançado há poucas semanas, está causando um impacto ainda maior no mundo da música. Como nos melhores trabalhos de Jay-Z e Kanye West, To Pimp a Butterfly força os limites do hip hop e tem sido descrito como um divisor de águas do gênero. Antes mesmo de o álbum ser lançado, um single abocanhou dois Grammys em 2015: a faixa 15, chamada apenas i, foi a melhor música de rap do ano e também a melhor performance. Ao ser disponibilizado no Spotify, o álbum caiu nas graças do público, quebrando o recorde do serviço de streaming por dois dias seguidos e atingindo quase 20 milhões de reproduções.
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Experimental, To Pimp a Butterfly exige comprometimento do ouvinte, ainda mais do brasileiro. Afinal, não é fácil entender as letras em inglês repletas de gírias. Mas a voz do rapper, grave, rouca e cheia de personalidade, pode ser apreciada em si mesma. Lamar sabe usá-la como o mais eclético dos instrumentos, oscilando entre o suave, o virtuoso, o raivoso e o desesperado _ a faixa u termina com ele rimando como se estivesse embriagado e chorando. Mais impressionante é For Free? [Interlude], na qual Kendrick faz um rap sobre improvisos jazzísticos de piano, sax e baixo. Gang Starr havia mostrado já nos anos 1990 que jazz e hip hop combinam, mas não a ponto de lançar um novo tipo de scat.
Assista ao clipe de uma das faixas do disco:
Além do jazz, outro ritmo recorrente é o funk dos anos 1970, a origem da maioria dos samples do disco. A ótima King Kunta lembra uma viagem cósmica digna de Parliament Funkadelic, repleta de guitarras e vozes distorcidas. O rap e um arsenal de efeitos eletrônicos são convocados para atualizar os sons antigos.
As letras são a cola conceitual do disco, que é um forte manifesto contra o racismo. A furiosa The Blacker the Berry é puro ressentimento contra as injustiças sofridas pelos negros (“Eu sou negro como o coração de um maldito ariano”). Já a faixa i celebra a negritude com versos como “Eu me amo”. Sem pudor, Lamar fala tanto em nome de todos os negros, quanto sobre seus próprios conflitos. A sensação que fica ao final do disco é que, como nas melhores obras de arte, o artista se entregou completamente.
To Pimp a Butterfly
De Kendrick Lamar
Rap, Interscope, 16 faixas,
US$ 16 (CD importado) ou disponível no iTunes, Spotify e Google Play.
Cotação: 5 de 5
*Colaborou William Rodrigues