Grande parte do melhor filme brasileiro dos últimos tempos foi rodada na rua de seu diretor, em Setúbal, bairro de Boa Viagem, no Recife. E também em seu apartamento, que, além de set, serviu de base de operações durante as filmagens. É difícil telefonar para a casa de Kleber Mendonça Filho e não fazer um esforço para ouvir, ao fundo, os ruídos com os quais o cineasta pontua o longa que, apropriadamente, é intitulado O Som ao Redor.

Continua depois da publicidade

– As cidades têm sons diferentes, nas viagens que faço isso sempre me chamou a atenção. No Brasil, mais ainda: vivemos num país tropical, com janelas constantemente abertas, e somos mais barulhentos do que conseguimos perceber – ele diz.

Clique aqui para ler mais sobre O Som ao Redor

Confira uma conversa com Gustavo Jahn, jovem protagonista do filme

Quando Kleber, 44 anos, conversa com Zero Hora, O Som ao Redor está para começar sua carreira nos cinemas de Porto Alegre, mas já está em cartaz no Rio de Janeiro e em São Paulo, além da capital pernambucana, há mais de uma semana. Os resultados deixam o cineasta exultante:

Continua depois da publicidade

– É incrível o que está acontecendo. Fiquei feliz com a boa recepção da crítica e os prêmios nos festivais, mas sempre pensava: “Tá, mas e a estreia no circuito, e o público em geral?”. No Brasil, está estabelecido que projetos de baixo orçamento e sem um grande plano de marketing por trás não são vistos. Há um abismo entre os grandes lançamentos e o restante da produção, sobretudo nacional. Um filme como O Som ao Redor registrar fila na porta dos cinemas num dia de semana, à tarde, conforme os relatos que recebi de São Paulo, é algo impressionante em se tratando de cinema brasileiro.

Os 12 anos de atuação como crítico (Kleber é jornalista de formação) o inspiraram a assinar o documentário de longa-metragem Crítico (2008), que foi visto, no total, por menos de mil pessoas nas salas brasileiras. Algo bem diferente do que acontece com seu primeiro longa de ficção, que, em seu fim de semana de estreia no Brasil, teve, em média, 840 espectadores por cópia em cada dia de exibição – número que está no patamar dos blockbusters e dos líderes de arrecadação do mercado (no mesmo período, Detona Ralph teve 818, De Pernas pro Ar 2, 850, As Aventuras de Pi, 776, e O Hobbit, com audiência já em queda livre, 381). Em cartaz em apenas 13 salas no país, O Som ao Redor somou 10.920 ingressos vendidos entre sexta-feira e domingo passados.

Nada explica esse pequeno fenômeno a não ser a qualidade do filme, que vem sendo incensado como o mais interessante retrato da classe média urbana brasileira pós-era Lula e que, além disso, é um tratado sobre as origens coronelistas da violência e das tensões sociais registradas no país nestes anos 2000. O Som ao Redor tem uma pegada que lembra o terror psicológico de John Carpenter e Roman Polanski e uma estrutura de painel à altura dos grandes folhetins universais de seu tempo.

– Agora já estou mais convencido de que o público tem facilidade de identificação com meus filmes, aí incluídos os curtas (Recife Frio, Vinil Verde, Eletrodoméstica, entre alguns outros dos melhores produzidos no Brasil nos anos 2000) – ele comenta, com a sensação de alívio pela missão cumprida e uma ansiedade confessa para deixar O Som ao Redor para trás e se dedicar a Bacurau, projeto de longa que está escrevendo, “já tem arrecadado um quinto do dinheiro necessário para a sua realização” e que, por enquanto, define apenas como “uma mistura de horror e ficção científica, algo nessa linha”.

Continua depois da publicidade

Entrevista

Kleber Mendonça Filho, diretor de O Som ao Redor

Zero Hora – O Som ao Redor aborda alguns dos grandes temas do Brasil contemporâneo, mas com uma visão bem particular: recria a rotina da rua em que você mora e usa recursos como o barulho produzido por vizinhos para narrar as tensões sociais existentes. O que o levou a essa abordagem?

Kleber Mendonça Filho – O som que cada cidade possui, que as pessoas nem sempre se dão conta de que existe. O filme tem muitos momentos sem diálogos. Fiz isso para poder usar sons ambientes que são comuns e que nem sempre percebemos e que, em geral, comunicam muita coisa. Há, por exemplo, aquela sequência em que os dois seguranças esperam pelo patrão na cozinha – você reparou que há diversos ruídos ali? Muita gente, eu diria a maioria do público, não repara. Mas esses ruídos são fundamentais para se criar tensão. Sabe aquelas cenas de filmes e séries que são feitas dentro de aviões? O som que o espectador ouve, ao fundo, é completamente diferente da realidade. Tem uma filtragem que o transforma por completo. Se algum dia eu filmar num avião, vou dar um jeito de aproveitar aquele barulho todo.

ZH – O filme já é um pequeno fenômeno de aceitação, tanto de crítica quanto de público. Isso te surpreende?

Mendonça – Nossas expectativas, minha e de Emilie (Lesclaux, produtora e mulher do cineasta), estavam sempre lá embaixo. Porque ninguém vê filme pequeno, esta é a realidade. Um diretor como Carlos Reichenbach (1945 – 2012) morreu com seus últimos filmes tendo vendido 2 mil ingressos. Trabalhar Cansa (2011), longa que adoro e que foi exibido em Cannes, vendeu 4 mil. Como esperar bons resultados diante disso?

Continua depois da publicidade

ZH – Mas O Som ao Redor é tão bom…

Mendonça – O problema é do mercado e se explica menos pelos filmes e mais pela cultura existente. O público é adestrado como cavalo. Precisa dar resultados imediatos. Se um longa tem algum silêncio, se não entrega tudo na hora, está fora do esquema industrial. Esses dias, li um comentário de um espectador sobre O Som ao Redor no qual ele falava que o filme “era muito bom, apesar de não ser comercial”. Veja como tudo mudou: não muito tempo atrás, Tubarão (1975) e O Exorcista (1973) eram comerciais. E eles estão recheados de sugestões. Hoje os fenômenos são fenômenos por conta do marketing, que é anterior ao filme propriamente dito. Ou seja, os fenômenos são criados independentemente do filme em si. Quando Amanhecer ou De Pernas pro Ar estreiam, já são midiáticos o suficiente para serem chamados de fenômeno. O filme é só uma gafe. Não sei se, apresentando Blue, de Derek Jarman (longa de 1993 que tem 80 minutos com a tela azul), o resultado não seria o mesmo do que o obtido por esses dois títulos citados.