Gaúcho de Porto Alegre, o diplomata Ricardo Primo Portugal morou durante cinco meses no país com o regime mais fechado do mundo, onde são raros os estrangeiros autorizados a entrar e jornalistas não são bem-vindos. Apesar do autoritarismo do governo do ditador Kim Jong-il, que morreu no fim de semana, e da penúria econômica, Portugal descreve detalhes pitorescos de lazer na vida cotidiana dos moradores de Pyongyang. capital da Coreia do Norte. Confira:
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Cenas de Pyongyang
Ricardo Primo Portugal*
Vivi 5 meses em Pyongyang, a partir do início de janeiro de 2010, trabalhando na Embaixada do Brasil naquela capital, antes de ser removido para nosso novo Consulado-Geral em Cantão, no sul da China. Antes, havia estado na Coreia do Norte durante poucos dias, em 2003, participando da primeira viagem oficial de diplomatas brasileiros ao país. Desde então, mantive-me acompanhando sua política mais ou menos de perto.
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O país fundou-se em uma das conflagrações mais ferozes e sangrentas da história – a Guerra da Coreia -, e consolidou-se em uma guerra civil que, por causa das pressões externas, não pôde se concluir e acabou levando à constituição de dois Estados diferentes onde antes, por milênios, havia um só país, com forte identidade nacional. A antiga capital da nação coreana, Pyongyang, foi bombardeada até o último prédio pelos EUA, e depois reconstruída com apoio russo no final dos anos 1950.
Essa nação é formada por um povo orgulhoso de seu passado, amável, basicamente alegre, gentil com os estrangeiros; que valoriza a família e os amigos, ama e protege os velhos e as crianças. As ruas de Pyongyang são cheias de grupos de meninos e meninas, com roupas coloridas, brincando pelas ruas e praças, amiúde com brinquedos artesanais – bastante popular um que, na minha infância em Porto Alegre, chamávamos de “carrinho de rolimã”.
É um povo que cultiva divertimentos públicos, como grandes festas, piqueniques ao ar livre, esportes de rua. Nas horas vagas e fins de semana, enche as muitas praças de Pyongyang – aliás, uma cidade bonitinha, apesar de decrépita, pela falta de recursos para a manutenção dos prédios e ruas.
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De fato, talvez uma das maiores surpresas para o estrangeiro que chega a Pyongyang é a aparente leveza da vida cotidiana dos cidadãos, a presença de uma inesperada característica lúdica e bem-humorada no povo de um país que nos acostumamos a encarar com preconceito, a partir dos noticiários, como um lugar extremamente pesado e infeliz.
Pyongyang é dividida pelo rio Taedong, que tem passeios públicos nas margens. Essas ramblas são enormes e largas, acompanhando a quase totalidade do rio, e são um passeio preferencial da população. Nelas se veem casais de namorados sentados em pontos mais reservados, estudantes reunidos ou sozinhos com seus livros. No inverno, as águas do rio congelam, e em certos pontos, em dias de sol, veem-se grupos de amigos pescando em buracos circulares cortados no gelo.
Há uma verdadeira paixão pelos esportes. Os norte-coreanos são bastante habilidosos, por exemplo, no futebol, esporte no qual o Brasil exerce uma atração especial. O boliche é muito apreciado e há grandes quadras dedicadas a esse esporte. O cinema, ainda que quase exclusivamente com filmes locais, é um divertimento bem popular.
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No interior, há verdadeira penúria em certas áreas. Em todas as localidades, sente-se a falta crônica de energia elétrica. Há tragédias naturais – agravadas pela insuficiência de obras de infraestrutura -, escassez periódica de alimentos. O país é pobre em recursos naturais e a economia está em crise estrutural prolongada. A maior parte do parque industrial está sucateado, a produtividade é baixíssima.
DVDs estrangeiros contrabandeados são fonte de informação
A falta de energia elétrica é particularmente grave no inverno. O país é muito frio. Em Pyongyang, há várias falhas de luz por dia. Embaixadas, hotéis maiores e prédios públicos utilizam geradores por causa disso. Há noite, a partir das 10 horas, a cidade fica toda às escuras, exceto pelos grandes monumentos, que dispendem muita energia em iluminação, chafarizes gigantescos etc.
As comunicações são bastante restringidas. O norte-coreano típico não tem quase informação do que se passa no mundo exterior. Entretanto, os DVDs estrangeiros, inclusive sul-coreanos, apesar de proibidos, circulam cada vez mais pela Coreia do Norte, contrabandeados principalmente da China.
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Há poucos anos, os norte-coreanos passaram a ter acesso a telefones celulares. Eles são distribuídos, em modelos simples, por uma empresa estatal. São muito caros e só têm alcance dentro do país. Os celulares vendidos para os coreanos não são os mesmos que para os estrangeiros. Isto é: os celulares de um estrangeiro e de um coreano não conseguem se comunicar entre si. A internet existe, mas é precária e concentrada em instituições – universidades, escolas, organismos públicos. A banda larga é bastante restrita.
Há muito debate sobre os caminhos que o país tomará a partir da morte de Kim Jong-il, sobre as possibilidades de se completar uma sucessão dentro do sistema, uma transição política em direção a algo novo, ou mesmo o colapso do Estado. Difícil prever, a esta altura, a capacidade de manutenção ou de reforma das instituições políticas do país, bastante tensionadas pela crise prolongada. Seja como for, as pessoas lá têm, em geral, um forte sentimento nacional e são capazes de enormes sacrifícios. Vivem diariamente em clima de preparação para a próxima invasão.
* Gaúcho de Porto Alegre, 49 anos, escritor e diplomata que há oito anos vive na Ásia Oriental. Publicou: DePassagens (Ameop, 2004), Arte do risco (SMCPA, 1992), entre outros livros.
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Em infográfico, veja as principais etapas do conflito entre as Coreias: