Santa Catarina, sempre apontada como uma ilha dentro do Brasil, está à frente em tudo que é desejável – renda per capita, Índice de Desenvolvimento Humano, exportações e expectativa de vida -, e atrás em taxas consideradas negativas, como analfabetismo, mortalidade infantil e desemprego. Era um Estado reconhecido por ser dono do menor índice de violência do país, com uma taxa de 11,4 homicídios por grupo de cem mil habitantes. Isto até 12 de novembro do ano passado, quando ataques terroristas macularam a imagem de um Estado repleto de bons indicadores.

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A chegada da BMW cola um selo mundial de qualidade e reconhecimento à indústria estadual, alicerçada numa tradição de bons gestores privados e de férteis regiões produtoras. Florianópolis virou a queridinha do Brasil e a sua apregoada qualidade de vida tem atraído pessoas de todas as classes sociais, que fogem do estresse das cidades maiores e desordenadas. A boa reputação se espalhou pelo mundo e ganhou espaços generosos em veículos internacionais, como o The New York Times, a rede BBC, o Business Insider e o The Wall Street Journal, que vivem a elogiar o estilo da Capital e região. Mas nos últimos quatro meses, após deflagrada a segunda onda de atentados, em 30 de janeiro, ônibus incendiados e viaturas e prédios policiais alvejados sepultaram a imagem de terra pacífica. E um motivo explica o mais recente capítulo da história catarinense: a máfia que surgiu dentro das cadeias.

Impulsionado pelas deficiências públicas de uma década e pela mente criminosa de um grupo de traficantes, assaltantes, sequestradores e assassinos, um poder paralelo, que mata, extermina, corrompe, intimida e se prolifera emergia há 10 anos nas entranhas das prisões catarinenses. As ações do bando, que se intitula Primeiro Grupo Catarinense (PGC), foram definidas por autoridades da área de Segurança como emblemáticas e acabaram inseridas no rol das assustadoras ondas de violência em massa que afetaram o Brasil nos últimos anos, atrás apenas dos ataques registrados em São Paulo em 2006, do histórico domínio de traficantes nos morros do Rio de Janeiro e do crime organizado que assolou o Espírito Santo no começo dos anos 2000.

Tanto que há menos de dois meses, e 16 dias depois de iniciada a nova ação orquestrada por criminosos, Santa Catarina passou a figurar ao lado de Alagoas, Maranhão, Pará e Mato Grosso do Sul como estados que precisaram recorrer à Força Nacional de Segurança para recuperar sua ordem pública. Com o envio de 40 líderes da facção por trás dos ataques para Mossoró (RN) e Porto Velho (RO), a normalidade voltou. Mas os problemas não se esgotaram. Ao contrário.

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Desde a virada do ano, antes portanto da segunda onda de ataques, o Diário Catarinense já deslocara dois de seus principais repórteres em busca de uma explicação: o que estava por trás dos atentados terroristas de novembro passado. Qual o real poder de fogo da chamada facção Primeiro Grupo Catarinense, da famigerada sigla PGC?

Diogo Vargas, 34 anos, e Felipe Pereira, 33 anos, interromperam a investigação iniciada para cobrir e retratar a segunda onda de ataques, que se estendeu do final de janeiro a 2 de março. Com o envio dos líderes das cadeias para presídios distantes e de segurança máxima, retomaram a apuração de fôlego. Analisaram mais 4 mil páginas de processos. Entrevistaram dezenas de autoridades, policiais, promotores, agentes e vítimas do crime organizado. E começam assim, a partir de hoje, a narrar pela primeira vez um dos capítulos mais horrendos da história de Santa Catarina – um capítulo que se inicia quando o crime organizado começou a ser sufocado pela polícia do Rio de Janeiro, na década de 1990.

Em uma série de reportagens, o DC apresentará revelações inéditas sobre a organização criminosa que se forjou nas cadeias do Estado aos moldes da máfia, como compara o próprio Ministério Público. Nos últimos três meses, o mergulho dos repórteres em inquéritos, interceptações telefônicas, cartas, documentos e decisões judiciais, incluindo o inquérito sobre o PGC que a Diretoria de Investigações Criminais (Deic) conclui hoje para envio à Justiça, permitiu entender por que a organização do crime em Santa Catarina se estruturou de forma a assustar até experientes membros do Judiciário quando estes tomaram conhecimento da capacidade de organização de pessoas que eram para estar confinadas e isoladas.

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Atrás das grades, como sombras da sociedade, o bando formado por 40 líderes – tratados às margens da lei como ministros vitalícios e conselheiros – ocupou comunidades inteiras, transformadas reféns. O organograma do PGC revela a dimensão mais letal dos terroristas. A quadrilha tem leis próprias, disciplina, estatuto e usa a violência como regra, justamente para amedrontar e punir os seus discípulos e também os mecanismos legais de proteção. Existem até julgamentos sumários à bala em casos de desrespeitos a missões ou normas. Para receber o salvo-conduto e ter a redenção, é preciso assassinar homens e mulheres da lei, como policiais e agentes penitenciários.

Os líderes do terror, organizados como uma empresa do mal, mantém aliança com o Comando Vermelho, facção criminosa do Rio de Janeiro capitaneada pelo narcotraficante Fernandinho Beira-Mar. A guerra fria que a quadrilha catarinense trava com o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, pelo domínio das cadeias, põe a população na linha de tiro. A apuração dos repórteres vai contar como se dá a inominável participação de advogados na rede de comunicação entre a cadeia e as ruas, com a revelação de diálogos estarrecedores e inacreditáveis para uma sociedade que se imagina civilizada.

A reportagem constatou ainda a existência de um recrutamento de pessoas para o crime. A associação está disseminada, anda pelos meios ilícitos e derruba vidas conforme o que a máfia pensa e entende como certo. A estimativa é de que 4 mil compõem o exército de criminosos – 50% deles presos e outra metade espalhada pelas ruas. Todos têm personalidades voltadas ao crime e uma certeza: não pretendem sair da vida marginal que os transforma em protagonistas do crime. A análise das revelações exclusivas obtidas por Diogo Vargas e Felipe Pereira mostram que Santa Catarina ainda não está livre da ameaça do crime organizado. O governo do Estado, no entanto, afirma que a espinha dorsal dessa estrutura foi quebrada.

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A série de reportagens vai mostrar não apenas como o grupo nasceu e de que maneira a inoperância do Estado ao longo da última década acabou contribuindo para o crescimento da quadrilha, mas o que pode ser feito para dissipar de vez esta ameaça – no momento silenciosa – que paira entre policiais, promotores e juízes que estudam o caso de maneira sigilosa e diligente.

É triste constatar que o perigo não está encerrado. Mas ao jogar luzes na mais duradoura e perigosa organização criminal da história de Santa Catarina, o DC acredita estar contribuindo a, ao chamar a atenção ao problema, colocar a sociedade ao lado das autoridades encarregadas de pôr um ponto final neste capítulo nefasto.