O Dia dos Namorados 2020 vai ter menos jantares românticos – pelo menos fora de casa, em restaurantes. Vai ter menos viagens comemorativas a dois. Levando em conta que os cinemas de grande parte do mundo permanecem fechados, vai ter menos cineminha com pipoca – no máximo, Netflix com pipoca, para os casais que moram juntos. E, para muita gente, vai ter menos contato físico; já que boa parte dos namorados (ou de ficantes, peguetes, crushes, amigos coloridos) não divide o mesmo teto – e, em tempos de coronavírus e isolamento social, o contato é exclusivamente virtual, com uma ajudinha da internet e das redes sociais.
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O curioso é que o namoro de toques, mãos dadas, beijos na boca e abraços com que estamos acostumados é que é novidade – historicamente falando, é claro.
— Uma coisa que incentivou o maior contato físico entre os casais foi a difusão do uso de pasta e escova de dentes, o que em muitos países, inclusive o Brasil, só aconteceu depois da Segunda Guerra Mundial — afirma a historiadora Mary Del Priore, ex-professora da USP e da PUC/RJ, autora de livros como História do Amor no Brasil e Histórias Íntimas: Sexualidade e Erotismo na História do Brasil.
— O beijo de língua só se populariza com o aumento dos hábitos de higiene. Aquelas poesias dos séculos XVIII e XIX que falavam que os namorados “se beijavam como pombas” queriam dizer isso mesmo: eram só bicotinhas; não se beijava de boca aberta.
Antes da higiene, aliás, o sexo não tinha o erotismo, a sofisticação que tem hoje: ele era extremamente objetivo.
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— Os homens baixavam as calças, as mulheres erguiam as saias, e era isso. Nós só chegamos a uma maior sofisticação erótica porque passamos a nos sentir mais à vontade com nossos corpos — explica Del Priore.
Não são só os hábitos de higiene, é claro, que influenciam a maneira como os casais se comportam em diferentes sociedades e diferentes períodos históricos: o próprio conceito de amor foi visto de diferentes maneiras ao longo dos séculos – e a teorização em torno do assunto, aliás, nasceu de uma maneira nada positiva.
— O amor romântico nasce teorizado como doença: é algo que nos contamina e tira nossa razão – conta o filósofo e escritor Luiz Felipe Pondé, colunista do jornal Folha de S. Paulo.
Os gregos tinham muitas palavras que hoje nós traduzimos por “amor”:
— O que chamamos hoje de “amor romântico”, os gregos chamavam de “pathos”; que origina tanto a palavra “paixão” quanto “patologia”, de doença. Outra palavra possível também é “eros”, que, para os gregos, é a força que move o desejo: nós associamos a palavra “eros” necessariamente a sexo, mas na sua origem ela representa tesão no sentido mais amplo; tesão pela vida, por exemplo. Esse entendimento de pathos e eros, na Grécia, é muito associado a um enlouquecimento que acomete as pessoas, muitas vezes por ação da deusa do amor e da beleza, Afrodite — explica Pondé.
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As coisas não melhoraram muito na Idade Média: foi nessa época que surgiu a ideia de “amor cortês”, que muita gente deve ter estudado nas aulas de literatura da escola.
— “Cortês”, aqui, vem de “corte”, de “realeza”, “nobreza”; só que a expressão acabou dando origem ao “fazer a corte”, “cortejar”, que significa “tentar seduzir” — diz o filósofo e escritor.
— Esses contos medievais falam do enlouquecimento causado pelo amor. Talvez o mais famoso seja o romance entre o cavaleiro Lancelot e a rainha Guinevere, esposa do rei Arthur. Nessa literatura, o amor sempre acontece fora do casamento, porque os casamentos da nobreza eram arranjados; e sempre leva à morte e à destruição. Normalmente a mulher é casada nesses contos, e há outro homem apaixonado por ela. O poeta mexicano Octavio Paz diz que essa literatura descreve o conflito entre a virtude e o desejo — completa Pondé.
Há duas coisas importantes de se observar aqui: a primeira é que os dramas envolvendo paixões impossíveis costumavam ser centrados na nobreza pelo fato de que as camadas mais humildes da população não precisavam se preocupar com casamentos arranjados: na maior parte das vezes, aliás, eles sequer se casavam oficialmente; e eram livres para viver e ter filhos com quem bem entendessem.
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— As camadas mais humildes da sociedade não eram tão estritas quanto a essas regras — fala Del Priore, ao comentar os hábitos de namoro e casamento adotados no Brasil (veja mais adiante) entre o século XVIII e o início do século XX. – A virgindade das moças não era tão valorizada; não havia uma “honra da família” sendo posta em jogo.
A segunda coisa importante a se notar é que, ao longo dos anos, amor, casamento e sexo nem sempre andaram juntos (veja mais na nossa linha do tempo); o que torna uma comemoração de Dia dos Namorados cheia de beijos e abraços algo relativamente “novo”. O casamento era um contrato, normalmente guiado por conveniências e pela necessidade de conservação de patrimônio. O sexo dentro do casamento era muito mais uma obrigação, com o objetivo de gerar filhos, do que um prazer. E a paixão e o sexo fora do casamento, embora rendessem bons contos literários, eram vistos como fonte de desgraça e desespero; algo a se evitar a todo custo.
— Entendia-se que a pior coisa que podia acontecer com alguém era cair sob essa doença do amor, que destruía sua vida e esculhambava a sua rotina — diz Pondé. – Os medievais diziam que o homem apaixonado perdia o patrimônio, e a mulher apaixonada, a reputação.

A historiadora Mary Del Priore, que estudou especificamente os costumes brasileiros associados ao amor e ao romantismo, reforça essa cisão entre paixão e casamento:
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— No século XIX já há registros de práticas de namoro; mas o namoro não significava qualquer tipo objetivo de longo prazo ou de compromisso: o compromisso final, o casamento, quem decidia eram os pais — afirma. — Casamentos eram arranjados até o início do século XX; mas muitas pessoas namoravam, escapavam dessa vigilância parental.
— É importante lembrar que a menina “de família” praticamente não saía de casa – destaca a historiadora. – Ela sequer tinha onde ou como conhecer um futuro parceiro, e acabava se casando com um primo, um tio, um filho de um amigo dos pais, um amigo dos irmãos. Elas não trabalhavam, não estudavam em universidades. Daí vem o costume dos bailes de debutante, que serviam como uma apresentação à sociedade de uma mulher que agora já estava disponível para casar. Mas essa “sociedade” era uma coisa restrita, não era um evento enorme: os convidados eram amigos da família, parentes mais distantes.
Algumas práticas de “namoro” descritas por Del Priore em seus livros soam hoje bastante curiosas.
— Havia, por exemplo, o chamado “namoro do gavião com a pomba”: especialmente na porta das igrejas (o principal centro de socialização da época, e um dos poucos lugares frequentados pelas moças), quando havia um certo tumulto na entrada ou na saída, o rapaz se aproximava da moça e dava-lhe discretamente um beliscão no antebraço, que era a única parte acessível do corpo da mulher. Esse beliscão era chamado de “mimo de Portugal”, e era um sinal da afeição do rapaz por aquela moça.
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— Outra forma de namoro era o “namoro de espeque” – prossegue Del Priore. – “Espeque” é um pau, um pedaço de madeira; e nesse tipo de namoro o pretendente ficava em pé o dia todo na frente da casa da jovem, fizesse sol ou chuva, na esperança de vê-la entrando ou saindo de casa em algum momento. E na esperança de que ela olhasse para ele, já que as mulheres não trocavam olhares com homens: na rua, elas andavam sempre olhando para baixo.
A partir da segunda metade do século XIX, conta a historiadora, com o crescimento das cidades, a moda passa a ser os “serões”: reuniões, no fim da tarde ou início da noite, nas casas das famílias ricas, em que os jovens (geralmente parentes, ou filhos dos amigos dos donos da casa) eram convidados para ouvir as moças tocando piano e recitando poesias.
— O interessante é que o piano passa a ser uma espécie de porta-voz do sentimento amoroso: por meio das músicas apresentadas, as moças podiam transmitir o que estavam sentindo — comenta Del Priore.
Embora muita gente fizesse de tudo para escapar da vigilância alheia – dos pais, da sociedade, até mesmo dos cônjuges com quem haviam se casado por obrigação —, tudo era muito escondido, velado, reprimido.
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— Nos bailes, as mãos das meninas estavam sempre calçadas com luvas, porque o contato físico da mão do homem com a mão da mulher era proibido – Del Priore explica. — E, quando o casal enlaçava as mãos para dançar, a moça apenas pousava sua mão sobre a mão dele: o homem não podia segurar a mão da mulher com a sua. Até o final do século XIX os casais só se tocavam, abraçavam e beijavam depois do casamento. Mesmo noivos mantinham um distanciamento e eram desencorajados a ficar sozinhos um com o outro.
Mas voltemos aos conceitos que os gregos e os medievais tinham sobre o amor e a paixão: de onde vem, então, a ideia de que o amor romântico é uma coisa bonita – e de que estar apaixonado é uma das melhores coisas que pode acontecer com alguém?
— No final do século XVIII, começo do XIX, começam a surgir histórias de amores impossíveis inspiradas na literatura medieval: esse é, finalmente, o que vai se chamar de “amor romântico” — explica Luiz Felipe Pondé. — Os românticos transformam esse tipo de literatura em uma coisa diferente da medieval: eles tinham um mal-estar com a modernização burguesa, com a lógica produtiva do mundo moderno, e transformam o amor medieval em uma coisa vivida por homens e mulheres ideais. Homens e mulheres verdadeiros morrem de amor: não são burgueses que só pensam em dinheiro.
O marco inicial dessa “virada” na história conceitual do amor e da paixão foi a publicação, em 1774, de Os Sofrimentos do Jovem Werther, do alemão Johann Wolfgang von Goethe: uma história impossível em que o protagonista, Werther, comete suicídio por não poder ficar com sua amada, Charlotte, que é casada com outro homem.
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— A partir daí, o amor romântico vira uma coisa aspiracional: quem nunca amou não viveu de verdade, quem não ama é interesseiro… — narra Pondé. — Muda a chave: de algo que você deve evitar, o amor romântico passou a ser algo que as pessoas devem buscar na vida. Mas de lá para cá muita gente questionou esse ideal, é claro. Em 1955, o escritor Denis de Rougemont publicou um livro chamado História do Amor no Ocidente, em que diz que os românticos começaram um engano que depois foi aumentado pelo cinema norte-americano; e esse engano é o de achar que o amor romântico é uma coisa boa que deve ser buscada – quando na verdade é uma desgraça na vida e só acomete os infelizes.

Por mais bonita que seja a imagem do amor romântico, ela de fato faz com que as pessoas criem expectivas irreais sobre seus relacionamentos. Pelo menos é o que afirma o psiquiatra e psicoterapeuta Francisco Baptista Neto, que, ao lado da esposa, a psicóloga Denise Duque, publicou o livro O Amor e Suas Exceções:
— Os desencontros afetivos e sexuais acontecem porque cada um imagina que só existe uma única forma de amar: a sua – explica Francisco. – Muitas pessoas se deixam influenciar por filmes e livros, e, embora sejam adultas, ainda acreditam em contos de fadas e em príncipes ou princesas. Influenciadas por enredos de filmes e novelas, algumas pessoas sonham em repetir no seu mundo real o que geralmente só acontece no reino da fantasia, do cinema, dos livros e da televisão.
Mas será que esse tipo de aspiração está morrendo? Em tempos de Tinder, “ficadas” que só duram uma noite e casamentos que acontecem cada vez mais tarde, algumas pessoas defendem que a era de ouro do amor romântico já passou.
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— O sociólogo e filósofo polonês Zygmund Bauman (autor de Amor Líquido: Sobre a Fragilidade das Relações) sustenta que as relações amorosas atuais não são construídas para durar, e que elas tendem a ser mais efêmeras, pois o ser humano pós-moderno é inseguro em sua própria estrutura. — explica a psicóloga Denise Duque; apesar de afirmar que, pessoalmente, não concorda com o sociólogo. – Assim, para ele, nada hoje em dia é “sólido”, nem mesmo os relacionamentos afetivos, amorosos. Bauman afirma que o amor é visto como um bem de consumo como qualquer outro, mantido enquanto fornecer satisfação e descartado rapidamente em troca de outro que ofereça ainda mais satisfação. Na sua forma “líquida”, o amor tenta substituir a qualidade pela quantidade.
Além de uma diferença geracional, há também uma diferença de comportamento entre as faixas etárias:
— Os adolescentes, com raras exceções, nunca estiveram voltados para o amor, e sim para a paixão, principalmente porque a paixão está mais relacionada à atração física do que ao amor – diz Francisco. – A paixão tem curta duração, o que explica por que eles são tão volúveis e descartam o parceiro com tanta facilidade. O adolescente, de uma maneira geral, é individualista, e vê o outro como alguém que existe para satisfazer os seus desejos. Se o desejo não é satisfeito, isso é entendido como falta de amor, e o outro é descartado.
— A disposição para o amor romântico vem diminuindo entre as gerações mais jovens – opina Pondé. – As pessoas são mais narcísicas. Acham que o amor romântico é impossível, é uma bobagem, atrapalha a sua vida. Porque o amor não depende só de você, não está sob o seu controle: depende de outro ser, que é livre, que age dentro da vida dele e da sua, e que pode te fazer sofrer. Quem sabe voltemos a pensar que o amor romântico é uma coisa que só acontece com gente boba, infeliz e desgraçada. Como os medievais, que evitavam o amor romântico como hoje se evita o coronavírus: não beije na boca, porque a contaminação é fatal.
— Homens e mulheres estão mais preocupados em despertar o amor do outro do que em amar alguém – Francisco prossegue. – Quando esses indivíduos encontram uma pessoa que lhes demonstre amor, o interesse deles fica centrado no amor que o outro sente por eles. Essas pessoas não amam, necessariamente, o outro: amam o sentimento que o outro tem por elas.
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*Arte: Ben Ami Scopinho