Os protestos de junho de 2013, que representaram um marco inicial para uma série de mudanças políticas no país, completam 10 anos neste mês. As manifestações que começaram com atos contra o aumento de R$ 0,20 nas passagens de ônibus em São Paulo se espalharam a partir de 17 de junho daquele ano por outras capitais, incluindo Florianópolis. Os atos frearam reajustes, renderam imagens históricas como a invasão da cobertura do Congresso Nacional, mas também ganharam pautas difusas e influenciaram em novos contextos políticos nos anos seguintes.

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O que menos pessoas sabem, no entanto, é que o Movimento Passe Livre (MPL), grupo que convocou os primeiros atos contra o aumento na tarifa em São Paulo e que se tornou protagonista das jornadas de junho no país, tem origens ligadas a Florianópolis. Duas ondas de protestos contra reajustes na passagem de ônibus na capital de SC, em 2004 e 2005, ficaram conhecidas como a Revolta da Catraca e são consideradas o estopim para o surgimento do MPL no país.

O Movimento Passe Livre foi fundado oficialmente em uma plenária do Fórum Social Mundial em Porto Alegre (RS), em 2005. Dois episódios de anos anteriores, no entanto, mobilizaram capitais brasileiras e criaram o ambiente favorável que desaguou na criação do coletivo.

O primeiro caso ficou conhecido como Revolta do Buzu, entre setembro e outubro de 2003. Na ocasião, estudantes e manifestantes fecharam avenidas de Salvador, na Bahia, para protestar contra o aumento da tarifa de ônibus.

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Nos dois anos seguintes, 2004 e 2005, movimentos semelhantes ocorreram em Florianópolis. Manifestantes fecharam ruas e as pontes da Ilha de Santa Catarina em protesto contra os reajustes nas passagens do transporte coletivo. Os levantes ficaram conhecidos como a Revolta da Catraca.

Em junho de 2004, durante a gestão da prefeita Ângela Amin, uma mobilização de estudantes e usuários de ônibus protestou contra um reajuste de 15,6% na tarifa. Após 10 dias de manifestações, o município revogou o aumento. Ainda em 2004, vereadores aprovaram um projeto que liberava o chamado passe livre estudantil, dando gratuidade nos ônibus para estudantes. Em novembro daquele ano, a lei foi suspensa e, mais tarde, declarada inconstitucional pela Justiça.

No fim de maio de 2005, uma nova onda de protestos teve início após um reajuste de 8,8% nas tarifas, desta vez já na gestão do prefeito Dário Berger. Movimentos de servidores municipais, motoristas e cobradores também se juntaram às manifestações para reivindicar melhores salários e condições de trabalho. A Câmara de Vereadores chegou a ser alvo de tentativa de invasões. Após três semanas de protestos, a prefeitura recuou do aumento.

Protestos contra alta da tarifa em Florianópolis em 2005 (foto) criaram ambiente favorável à formação do MPL (Foto: Koldeway A. C., arquivo DC)

Estopim para o MPL

O historiador Marcelo Pomar foi um dos principais nomes dos protestos de 2004 e 2005 em Florianópolis. Preso duas vezes após os atos, ele afirma que o fato de a Revolta da Catraca em SC ter conseguido reverter os reajustes deu força ao ambiente que nos meses seguintes influenciou na criação do MPL.

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— Aquelas manifestações foram para o Brasil o estopim do Movimento Passe Livre. Ele surge a partir da Revolta das Catracas, em 2004 e 2005, sobretudo porque elas foram vitoriosas. Nas duas ocasiões, elas reduziram o preço das tarifas, o que parecia algo incrível. Fazer com que o poder público sentisse necessidade de dar uma resposta política — afirma.

A partir da criação do Movimento Passe Livre no país, em 2005, o debate sobre o custo do transporte coletivo alcançou uma nova dimensão, e ganhou força o debate sobre a chamada “tarifa zero”. Segundo os defensores da tese, ela seria capaz de garantir à população das periferias acesso às conquistas da cidade, como espaços de cultura e lazer.

— É uma interpretação do transporte como se interpreta, por exemplo, a saúde e a educação, como um interesse público. Esse é um debate que a gente estava propondo naquela época e que parecia de outro mundo, maluco, mas hoje é uma coisa mais aceita — conta.

Revolta da Catraca, em 2005, foi um dos eventos que inspirou início do Movimento Passe Livre (Foto: Koldeway A. C., arquivo Diário Catarinense)

Os protestos de 2013

Se as manifestações de 2004 e 2005 são lembradas pelo historiador como triunfos na busca por um transporte mais acessível, as chamadas jornadas de junho de 2013 são consideradas um período de derrota nas ruas. Ele considera que o movimento nasceu como uma revolta de estudantes contra a alta nas tarifas, mas que teria havido uma “apropriação” por outros segmentos sociais mais organizados.

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A difusão de pautas à medida que as manifestações ocorriam foi uma das marcas dos atos de junho de 2013. Cartazes contra o valor as passagens começaram aos poucos a dividir as ruas com mensagens sobre gastos para a Copa do Mundo de 2014, cobrando serviços públicos “padrão Fifa” ou com frases de humor que viralizavam na internet em uma era pré-memes.

Junto a isso, ganharam espaço bandeiras e camisas do Brasil, estética que ocupou as ruas com estridência nos anos seguintes. A mudança de curso nas reivindicações dos protestos de junho foi algo sentido na ocasião por militantes como Pomar.

— Eu percebi muito claramente na época, porque eu quase apanhei em cima da ponte. Ali deu para perceber já muita gente vestida de verde e amarelo, numa vibe diferente. Quando a gente passou, já não era aquele clima. Eu falei: “Nós somos minoritários aqui” — afirmou.

Hoje professor de xadrez, Marcelo Pomar participou de atos contra reajuste na tarifa que inspiraram MPL (Foto: Tiago Ghizoni, NSC Total)

Os protestos de junho de 2013 são com frequência relacionados às mudanças políticas que ocorreram nos anos seguintes, incluindo o impeachment da presidente Dilma Rousseff e a ascensão da extrema direita. O cientista político e social e professor da UFSC, Julian Borba, pondera que as manifestações não são a única explicação para esses fenômenos que vieram em sequência, mas admite que há uma mudança nas características dos atos de 2013.

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— É como se a agenda que dá origem aos primeiros atos fosse sendo substituída, ou a ela fossem sendo incorporados outros públicos. Essa é a grande questão: quem inicia nos atos de 2013 não é quem termina. Muda-se completamente o perfil dos participantes, isso está bem documentado — avalia.

Semente do “passe livre”

O historiador Marcelo Pomar considera os protestos de 2013 positivos por terem tornado o debate sobre a tarifa zero algo mais natural para a população. Hoje professor de xadrez, ele ainda acompanha a política e participa de discussões sobre transporte público. Considera projetos como o de Garopaba, cidade do Litoral Sul que recentemente iniciou um modelo de gratuidade total nos ônibus municipais, e até mesmo o domingo na faixa, da prefeitura de Florianópolis, como consequências surgidas a partir de junho de 2013.

— Para mim, isso é uma conquista, um reflexo de um debate que foi feito, e mais do que tudo, uma demonstração de que é possível — pontua.

Protestos de estudantes contra aumento de tarifa em Florianópolis, em 2005 (Foto: Koldeway A. C., arquivo Diário Catarinense)

O MPL hoje

Dez anos após os protestos de junho de 2013, o MPL não possui mais grupo mobilizado em Florianópolis — há apenas um coletivo em Joinville. O geógrafo e ex-militante do MPL em SC, Victor Khaled, reconhece que houve queda no número de militantes e presença nas cidades e atribui isso à concorrência com outras pautas políticas e à entrada de outros atores na defesa da tarifa zero. Apesar disso, defende que a ideia do movimento aparece como vitoriosa uma década depois.

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Provas disso seriam o número maior de prefeituras adotando ou estudando o modelo de tarifa zero e o debate sobre a criação de um Sistema Único de Mobilidade, semelhante ao que é o SUS na saúde.

Dez anos depois, a pauta também se moderniza. Uma novidade defendida a partir deste ano pelo MPL é a Coalizão Triplo Zero, campanha em parceria com outros grupos que agrega à tarifa gratuita a meta de zerar as emissões de carbono e as mortes no trânsito.

— Dez anos depois, a gente tem que reconhecer o quanto aquelas mobilizações impulsionaram e colocaram a pauta da tarifa zero na ordem do dia — avalia.

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