Nádia Maria dos Santos Cunha sabe de berço que a fé é uma só, e que as formas de praticá-la podem ser plurais. Ela é Yalorixá — mãe de santo — sacerdotisa de um terreiro de Ketu, uma vertente do candomblé e umbanda. Mas também é devota de Nosso Senhor dos Passos, importante expressão e celebração da fé católica.

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— Ele [o senhor dos passos] apareceu na minha vida através da minha avó paterna, Dona Geninha. Nós morávamos no Ribeirão da Ilha e ela sempre nos levava para a procissão do Senhor dos Passos. Por ela ter essa devoção, foi ela que nos educou para ter uma vida mais suave, mais tranquila, seguindo os passos daquilo que é correto. E no lado materno, minha avó nos deixou a umbanda. O caminho da religião é para todos, basta as pessoas permitirem — afirma Nádia.

Mesmo expressando sua crença sem medo durante a procissão do Senhor dos Passos a realidade se impunha de maneira diferente para ela. Nádia afirma que durante os trinta anos que trabalhou em uma grande empresa estatal em Santa Catarina, nunca expôs sua fé nos orixás.

— Se envolvesse a religião, nós éramos banidos. Então, eu omiti aos olhos do povo, mas foi umbanda que me deu a grandeza e a fortaleza de trabalhar na empresa — relembra.

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Ela avalia que hoje o cenário é outro, ela e o irmão, o babalorisa Everson Luz dos Santos são lideranças do Ilé Asé Omodé Omiodô Osún aty Oyá – um terreiro de candomblé Ketu e umbanda que fica em Palhoça, na Grande Florianópolis.

— Houve sim muito avanço e isso aconteceu porque nós fomos resilientes. Eles [meus irmãos, filhos e netos] são frutos desta força. Eles vieram de uma matriz africana, do nosso próprio ventre. E isso fez com que eles se sentissem mais à vontade de ter essa força. É uma mudança para melhor. De se colocar, de nos impor. E não admitir que ninguém tire o nosso espaço. Devemos ser respeitados, independente do credo, porque se a fé está dentro de nós, ela não tem cor, não tem olhos — conclui.

Diferentes religiões, uma única fé

Resgate e tolerância por meio da religião

A religiosidade faz parte da identidade dos povos, assim como sua cultura, língua, códigos e costumes. Para construção da identidade negra muitas vezes o resgate da ancestralidade e noção de comunidade é feito por meio das religiões de matriz africana — o candomblé é uma delas.

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— A gente fala muito dos quilombos, né?! Mas todos nós viemos de um navio, cada um foi deixando em locais diferentes. E quando a gente vem aqui [num terreiro de candomblé] e identifica os orixás: Oxum, Iemanjá, Ogum, Oxóssi vemos que eles são oriundos dessa África. É a partir daí, eu me reconheço como filho desse santo. E por isso eu vejo como uma questão de resgate quando estamos todos juntos aqui — explica o babalorisa Everson Luz dos Santos.

O culto nasceu no continente africano e foi trazido pelos escravizados que aportaram em solo brasileiro no século XVI.

— O candomblé é um misto de religiões de matriz africana. Têm a nação Banto, Keto, Jeje e Angola. É onde a gente consegue ver essa diáspora nas nações [que vieram de África de maneira forçada na época da escravidão] e isso faz com que o candomblé seja uma colcha de retalhos — explica Everson.

No Brasil a religião sofreu algumas alterações e, por ter sido proibida e discriminada por séculos, o uso do sincretismo foi necessário para a sua continuidade. Ou seja, os Orixás – as divindades cultuadas – passaram a ser associados aos santos católicos. E isso, por si só, já pode ser entendido como um grande sinal de tolerância religiosa por parte dos adeptos.

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— Vejo que o praticante do candomblé não tem preconceito com nada e nem com nenhuma outra religião. Se o evangélico passa na minha porta eu vou abrir, vou oferecer um café. Mas se um dos meus adeptos passar de branco, eles serão demonizados, criticados, ridicularizados. A falta de conhecimento faz com que essas pessoas se tornem cada vez mais intolerantes. A mudança também tem que vir dos dirigentes das religiões. Se cada um entendesse que Deus é um só e que ele fala de diversas maneiras, a gente vai conseguir controlar essa intolerância — conclui pai Everson.

Projeto celebra a história negra

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