Na letra da canção A Nossa Casa o músico e poeta Arnaldo Antunes descreve este espaço para o qual voltamos todos os dias depois do trabalho com suas frases simples:
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Na nossa casa amor-perfeito é mato
E o teto estrelado também tem luar
A nossa casa até parece um ninho
Vem um passarinho pra nos acordar
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Na nossa casa passa um rio no meio
E o nosso leito pode ser o mar
É isso, casa é aconchego. Se as roupas mostram às ruas o que somos, a casa é um como um cofre de nossos tesouros, da intimidade, da vida como ela é, dos badulaques na estante, da surrada camiseta de algodão para as manhãs preguiçosas de domingo. É a materialização das memórias em poucos – ou muitos – metros quadrados.
Juliana Pippi sabe muito bem tudo isso. A arquiteta nascida em Florianópolis há 39 anos vem consolidando seu nome como uma das profissionais brasileiras mais respeitadas quando o assunto é decoração de interiores. Ela recheia a vida alheia de aconchego. E mostra o domínio de sua atuação ao receber a reportagem de Donna em seu apartamento na Rua Almirante Lamego, um cantinho charmoso da Ilha de Santa Catarina cujo o vaivém dos moradores aposentados lembra, mesmo que de longe, o perfume adocicado das ruas do Leblon, no Rio de Janeiro. Enquanto posa com o marido Renato para uma matéria da revista Casa Claudia, a cena lá fora, numa tarde quente de fevereiro, parece ganhar os versos de Quiet Nights Of Quiet Stars, de Tom Jobim.
Para quebrar o clima, Juliana se despede da outra equipe, saca seu telefone e me fotografa, sentado num sofazinho de tramas naturais colocado estrategicamente à frente dos janelões de vidro do apartamento:
– A luz está linda. Não podia perder o clique – diz, sorridente, como é sua característica, ao ajustar o foco.
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A arquiteta está tão acostumada com este tipo de acontecimento que reconhece uma boa luz. É hoje o nome mais midiático entre seus colegas. Os projetos estão em publicações das mais diversas – como a já citada Casa Claudia, Casa & Jardim, Casa Vogue e Bamboo, só para ficarmos com os títulos mais vendáveis – e os prêmios não param de chegar em seus quase 20 anos de carreira.
O mais recente foi figurar entre os 12 destaques brasileiros de decoração, mobiliário e arquitetura no World Design Rankings, que contempla os países mais premiados nas últimas seis edições do ADesign Award, distinção italiana conferida anualmente a mais de 100 categorias de projetos. Pippi está ao lado de Marcio Kogan, Fernanda Marques e o estúdio Mula Preta Design, entre outros nomes de referência no país.
Para entender como ela chegou à lista, é preciso voltar no tempo, como é comum neste tipo de reportagem. As memórias estão impregnadas nas paredes da atual morada do casal. Ali, Ju viveu dos quatro aos oito anos com os pais e a irmã mais velha. O patriarca ditou regras e a educação militar é citada em vários momentos da entrevista.
– Esse apartamento tem uma história muito legal, é a casa da infância. Era um dos primeiros prédios da região da Beira-mar, sempre gostei da localização, da iluminação, de descer e brincar na rua. Mas minha mãe quis se mudar, uma coisa meio nômade. Esse apartamento foi vendido para um argentino, ficamos perambulando por outros locais até que ela fez meu pai comprá-lo novamente. Aqui que eu quero envelhecer, aqui montei meu primeiro escritório – relembra.
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O apê em questão não virou herança, foi comprado da mãe há uns seis ou sete anos. O home office deu início à construção da carreira profissional e sua lembrança mais remota está ligada à decoração:
– Minha família não tem relação com a arquitetura. Eu sempre gostei das artes, lembro que quando era pequena não gostava de brincar com a Barbie, eu gostava de montara casa dela, o cenário. Inventava os móveis,então, por exemplo, um Danoninho virava um pufe – conta. Rimos da possibilidade de algum designer famoso criar uma peça inspirada no pote de iogurte.
A mãe, sabendo das habilidades da pequena Juliana, a matriculava nas escolinhas de arte. Na adolescência, criava para o quarto papéis de parede com páginas de jornal. E antes mesmo da faculdade fazia projetos para as mães das amigas. Foi assim que ganhou seus primeiros R$ 50. Outro trampo que descolou foi numa videolocadora. Podia levar os filmes para casa e assistir de madrugada. A Arquitetura, na hora do vestibular, tinha prioridade. Mas Artes Visuais e Direito também estavam no radar. Ganhou a primeira opção e assim circulou por cinco anos pelos corredores da UFSC.
– Eu fui me descobrir na prática. Porque o curso de Arquitetura é muito voltado para as coisas da cidade, do urbanismo. A relação com interiores é zero, não existe. Há um certo preconceito até, de ser uma coisa fútil. Não que ela tenha se preocupado com isso. Na antiga sala de TV dos pais, hoje sua sala de música, Juliana começou a atender os clientes. Dona Zulma, a primeira deles, a contratou para fazer um apartamento inteiro, do zero. Faltava um ano para a formatura. Desde então, já reformou o mesmo espaço outras três vezes. Virou a arquiteta da família. Tipo médico.
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Daí em diante, passou a dar passos mais largos. Conheceu o dono de uma construtora, fez detalhamento de fachadas, hall, interiores. Foi ele quem a encorajou a ter uma sede própria de seu escritório. A irmã, proprietária de uma imobiliária, encontrou a sala perfeita na Felipe Schmidt, Centro da capital catarinense. Ficou 11 anos por lá. Se mudou não não faz muito tempo:
– Achei uma sala incrível que eu amei na SC-401. Acho que a cidade está se movendo para este lado. A sala tem proporção de casa, com terraço, jardim, até plantamos uma jabuticabeira. Foi uma grande realização – descreve o ambiente que traz muitas de suas influências e estilo.
O escritório é o local onde recebe seus consumidores para o primeiro papo, as primeiras impressões, os desejos, os devaneios, tudo. Juliana não consegue contabilizar quantos projetos assinou, mas já atendeu mais de 350 clientes. Hoje, pode se dar ao luxo de não aceitar projetos pela metade:
– Não faço uma área em que eu não consiga imprimir um estilo. Tem muita gente que me chama para ambientar apenas, já tem uma base. Aquilo não é meu projeto, pode parecer meio babaca, mas eu penso na alma da casa. Preciso pegar do embrião. Eu faço muito apartamento que acabou de sair da construtora. O negócio é ter o conceito, é a alma do projeto, não é só o quadrinho na parede para uma foto.
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Quando falamos de reconhecimento, Juliana gosta mesmo é de saber que pessoas que ela nunca viu conhecem suas impressões digitais na profissão. Já foi parada no supermercado e no shopping para receber elogios desconhecidos. O momento culminou com uma série de realizações como o resgate do apartamento da família e a compra do escritório.
– As pessoas que me procuram já se identificam comigo, é uma triagem natural. Como em todos os meus projetos eu tenho uma pegada de cor, arte e design, são pessoas que curtem isso que, naturalmente, me procuram.
Os mais de 12 mil seguidores do Instagram @julianapippi estão acostumados a acompanhar a rotina frenética da arquiteta. Das inúmeras viagens pelos destinos mais descolados do globo até a correria de véspera da entrega de algum projeto. Atualmente, cerca de 60% dos clientes não são de Floripa. São paulistas e gaúchos que, geralmente, vieram morar na Capital. Muitos fazem parte daquela turma na qual a família migrou em busca de segurança e qualidade de vida. Para completar esta composição de paraíso, eles optam por preencher suas casas com as ideias da manezinha. Estes sortudos participam do que ela batizou de Dia D. É o dia da entregado apartamento – atualmente, ela faz mais apartamentos do que casas. A ideia veio depois de anos assistindo a realities de decoração como o Extreme Makeover: Home Edition ou o Lar Doce Lar e as inúmeras participações em mostras de decoração, arquitetura e design como Casa&Cia e Casa Cor.
– Uns 15 dias antes de finalizar eu proíbo o cliente de ir na obra, porque estamos montando a marcenaria, ainda não tem o papel de parede. Geralmente, escolho tudo, livros, obras de arte, roupas de cama. No dia anterior começo a colocar uma pilha, fazendo fotos, vídeos, enviando pílulas. Eles não dormem – ri, comentando sobre este que é o ápice de sua profissão. Quase sempre uma hora depois da entrega os clientes ligam, choram, fazem vídeos, se deleitam com o novo ninho.
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Música como inspiração
Para entender como todo o aparato e meses de trabalho dão certo – em sua equipe estão mais oito profissionais – é preciso conhecer um pouco da metodologia do escritório.
– No meu briefing inicial falo muito de música. Faz parte da minha vida, eucanto, toco flauta, toco violão. A música faz eu entender o cliente, é muito subjetivo e diz muito sobre as pessoas.
E é com o violão em mãos, cantando Marisa Monte afinadíssima, que ela brinca com o fotógrafo, faz pose, se diverte e nos encanta. Os amigos já conhecem seus talentos artísticos há anos.
Assim como na moda, a decoração de interiores também passa pelas tendências. Muitas mudanças estão relacionadas ao comportamento das novas gerações. TV no quarto era algo comum no passado. Atualmente, costuma gerar debates entre os casais. O que todos querem é conforto, espaço para ser usado. Ociosidade de metros quadrados não é mais permitida:
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– O pedido que mais vejo é uma casa para usar. Muitos conceitos mudaram, como a sala de estar, a sala de jantar ou o quarto de hóspedes. O quarto mix, que reúne home office e quarto para hóspedes, é o que todo mundo quer. E aí tem coisas recorrentes, as mulheres amam armários, o closet ainda existe, porém os apartamentos não têm mais espaço. A cozinha tem que ser bacana. Começam a surgir várias coisas, mesmo em apartamentos menores: duas cozinhas, uma para o dia a dia e outra para o final de semana, da família – comenta.
Crianças também são agentes importantes. Elas estão muito mais participativas informadas. Já não mandam mais só em seus quartos. Algumas chegam repletas de referências na primeira reunião, buscam inspiração no Pinterest.
– Entreguei recentemente um projeto em que o filho do casal, um menino de 11 anos é meu fã. É super ligado em decoração, foi ele que pediu à família para fazer o projeto comigo. Em nosso primeiro encontro ele veio na porta e me deu um mega abraço, ficou agoniado para falar. Na hora de contar o que queria de seu quarto, ele abriu o laptop comum a pasta cheia de referências.
Quando falamos de orçamento, Juliana, que não costuma fugir de nenhuma pergunta e revela que compra até os utensílios da cozinha para os clientes, por exemplo, é direta:
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– Já perdi de fechar orçamento por ser sincera desde o começo. Eu sempre digo: Quanto você gastou neste apartamento? R$ 1 milhão? Bom, você pode se preparar para gastar o mesmo valor dentro dele. Falo do orçamento do primeiro ao último encontro. Essa transparência é fundamental, depois tenho que entender como esse cliente vive. Qual é a renda dessa família, o que ela espera dessa casa, para onde ela viaja. O cliente vai achar tudo caro. Por outro lado, a gente começa a mostrar o custo-benefício. Uma marca interessante, aquele sofá que você não vai trocar mais. Nem tudo é carésimo. O que acontece é que agente sabe o que é bom e barato, caro e ruim e vice-versa – sentencia.
Pergunto como ela se vê diante do sucesso, do reconhecimento, dos clientes, da relação tão próxima.
– Eu sou o quinto elemento da família. Quase como uma psicóloga. A família se analisa, discute assuntos que nunca discutiu, a relação com o espaço que habitam, o que pretendem, gostos, cores, tecidos. Assim como a roupa é a tua vestimenta do corpo, a casa é a vestimenta da família. A minha relação é sempre muito íntima, cuidadosa, respeitando os gostos ou desgostos. Nunca vou negar dizendo que isso não se usa ou se usa. Tem que entrar no universo das pessoas e respeitá-lo. E todo mundo tem alguma coisa cafona em casa – finaliza, entre risos, flashes do fotógrafo, um quadro de Rodrigo Cunha na parede e um livro de Patricia Urquiola, designer espanhola radicada na Itália e um dos seus desejos atuais, na mesa de centro. São pequenos detalhes do universo particular de Juliana Pippi.