Talvez nunca tenhamos estado tão conectados quanto em 2020. Não é que a internet e as redes sociais já não dominassem boa parte de nossa comunicação e entretenimento desde muito antes, mas, com o estouro da pandemia de coronavírus, muitas atividades que antes eram feitas presencialmente, pessoalmente, no “mundo real”, foram passadas também para o ambiente online: o trabalho, as aulas, até mesmo os shows de música… As plataformas de streaming ganharam milhões de assinantes; o WhatsApp se tornou onipresente; e serviços como Zoom e Google Meet passaram a reunir de colegas de trabalho em reunião a amigos que há meses não se reúnem pessoalmente para uma boa conversa.

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Com tudo isso acontecendo, é até curioso pensar que o curta-metragem brasileiro Desconexo foi idealizado e gravado antes disso tudo começar: a história foi pensada no meio de 2019, e as gravações aconteceram na segunda metade de agosto. Mesmo assim, a trama dialoga com o cenário de 2020 de uma maneira interessante e quase curiosamente apropriada – a narrativa reflete sobre as imagens de nós mesmos que construímos nos meios virtuais, e as relações que estabelecemos com outras pessoas por esses meios.

No filme, dois jovens, vizinhos, não se conhecem pessoalmente, mas têm uma relação online: um deles cria conteúdos eróticos, e o outro os consome por meio da internet. Quando a rede é suspensa no país por ordem presidencial, os personagens se encontram, fogem para o litoral, e passam uma noite offline, lidando com questões de identidade, desejos e percepções de mundo. Imagens de arquivo e trechos da obra de Guimarães Rosa se misturam às cenas gravadas para o filme, adicionando camadas interpretativas à história.

Desconexo estreou mundialmente no Outfest Los Angeles, um dos maiores festivais LGBTQI+ do mundo; e chegou ao Brasil no Festival Mix Brasil, de São Paulo. O curta foi, ainda, selecionado para o festival Chèries-Chèries, em Paris; e exibido no Festival Internacional do Novo Cinema Latino-Americano, de Havana. A produtora responsável é a Mundivagante Studio, de Florianópolis, onde o roteirista e diretor Lui Avallos – que também interpreta um dos dois protagonistas – morava quando concebeu a história.

Pôster de
Pôster de “Desconexo” (Foto: Divulgação)

– A gente criou essa história de uma maneira muito colaborativa – Lui conta, quando perguntado de onde veio a ideia para o roteiro. – Eu e o Júlio Oliveira, que é um dos atores do curta, queríamos trabalhar juntos há muito tempo. Foi ele quem me trouxe essa premissa de o que aconteceria se as redes sociais parassem de funcionar. Eu achei interessante, e propus evoluirmos isso: e se fosse a internet como um todo, e não só as redes sociais? E se fosse por um motivo político?

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– Nosso processo de criação também foi muito focado nesses dois personagens – ele prossegue. – Queríamos dois personagens hiperconectados, que tivessem essa relação muito intensa com o digital, mas posturas diferentes em relação a isso.

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A abordagem escolhida, que mexe com a sexualidade e com um certo erotismo, pode parecer provocativa; mas Lui afirma que a essa questão é secundária em Desconexo.

– A sexualidade está presente, mas é mais um pano de fundo para outras questões que eu quis trazer – explica. – Quando estava problematizando essa questão do digital, eu pensava muito sobre como a nossa subjetividade e nosso desejo são muito condicionados, estão muito sujeitos a imagens. Então, quando criei esses personagens, eu pensei: “Como eu posso criar um personagem que se expõe através de imagens, e esse outro que tenta ser visto através de imagens, mesmo sem saber bem como?”

– Este filme possui muitas camadas – completa Rodrigo Moreira, que atuou como produtor do curta. – Você pode assistir como uma coisa leve, sem pensar demais; ou como fonte de reflexão sobre vários assuntos: infância, auto-imagem, internet, poesia, crítica social…

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Além de dirigir
Além de dirigir “Desconexo”, Lui Avallos também interpreta um dos protagonistas do curta (Foto: Divulgação)

Lui e Rodrigo têm trajetórias diferentes no mundo do cinema: Lui é formado na área (“sempre tive uma vontade muito grande de contar histórias, de fazer cinema”, afirma); estudou teatro enquanto morava em Florianópolis; e é diretor criativo da Mundivagante, com sede na Capital catarinense. Já Rodrigo é formado em engenharia civil, e trabalhou por alguns anos com gestão ambiental antes de conhecer Lui, que precisava de ajuda para escrever um projeto para tentar um edital do Ministério da Cultura. Hoje Rodrigo também trabalha na produtora de cinema.

– Uma coisa é fazer a gestão de um projeto do qual você já sabe o valor em dinheiro; esse projeto não tinha nada – ele diz, sobre o desafio de fazer Desconexo acontecer. – Quando essa tarefa chegou para mim, eu a princípio até fiquei meio resistente. Como organizar isso tudo?

De baixíssimo orçamento, o filme é uma produção 100% independente, viabilizado, como coloca Lui, “pela boa vontade e pela garra da galera envolvida.” Os únicos apoios vieram de pessoas ou empresas que contribuíram emprestando equipamentos ou locações, por exemplo.

– Na equipe nós temos pessoas que, na minha opinião, são profissionais que vão aparecer entre os grandes nomes do cinema brasileiro nos próximos anos – aposta Rodrigo. – O próprio Lui; a Bárbara [Bianchi], que é diretora de fotografia; o Paulo [Muniz], que fez uma parte do som… São jovens que acreditam muito no que estão fazendo.

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A divulgação também está sendo feita de modo mais informal, já que a equipe não conta com verba de publicidade:

– Está sendo um trabalho de formiguinha mesmo, de um contar pro outro. – explica Rodrigo. – Além da internet, estamos contando muito com a propaganda feita pelos festivais. Acho que vivemos em um mundo de coisas muito instantâneas, muito rápidas: se, por um lado, conseguimos chegar a mais pessoas; por outro, temos dificuldade de nos mantermos relevantes no meio desse mar de informações.

A parte mais demorada até aqui, segundo Lui, foi o processo de edição. Enquanto editava as imagens gravadas para o filme, o cineasta recebeu de sua mãe uma peça de teatro gravada por ela e estrelada por ele. A peça é baseada em um texto de Guimarães Rosa.

– Eu comecei a assistir, e algo em mim conseguiu fazer um link entre as duas coisas – relata Lui. – Como interpreto um dos personagens do filme, eu “emprestei” minhas imagens de arquivo ao personagem, como se fossem imagens de arquivo dele. Aí, como a peça era baseada em um texto do Guimarães Rosa, eu fui procurar alguma pista na obra dele; e encontrei o conto O Espelho, do qual acabei pegando alguns fragmentos para incluir ao longo do filme. O texto fala sobre esse processo de autoimagem, de identidade, de identificação… Claro que ele fala em um outro contexto, mas acho que mostra que essa é uma questão muito atemporal.

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Trabalhar no lançamento e divulgação de um curta-metragem narrativo em meio a uma pandemia é algo que também ganhou novos contornos, dificuldades e mesmo vantagens – como tudo neste ano de 2020.

– Por um lado, lançar o filme online nos deixa de coração apertado, porque claro que temos vontade de estar com as pessoas, ver o filme numa tela de cinema – confessa Lui. – Mas, ao mesmo tempo, os festivais online possibilitam que muito mais gente, de muitos lugares diferentes, veja o nosso filme. A acessibilidade é maior, e conseguimos entrar em contato com mais pessoas. Acho que tudo tem dois lados.

Mesmo assim, ele se mostra esperançoso e otimista quanto ao futuro do cinema brasileiro:

– Por mais que as circunstâncias não sejam as mais positivas, eu tenho visto os últimos filmes que têm sido produzidos no cinema nacional, e vejo que têm muito conteúdo incrível, muita gente talentosa produzindo – afirma. – Nos últimos dois anos, todos os grandes festivais internacionais tiveram uma presença massiva do cinema brasileiro, que com certeza tem muito a dizer. E eu vejo uma certa flexibilização nos processos de produção: filmes incríveis sendo feitos com poucos recursos, sem necessariamente precisar esperar ser aprovados em um edital com um grande montante para começar a ser produzidos.

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– Fazer arte no Brasil nunca foi fácil – desabafa Rodrigo. – Quando tem a oportunidade de conhecer um pouco o que acontece em outros países, a gente vê como o Brasil é deficiente em promover sua cultura de forma geral, não só cinema. E isso não está necessariamente ligado a falta de recursos, porque a gente percebe que alguns outros países que são pobres incentivam sua cultura, mais que o Brasil. Isso não é de agora, é uma coisa que vem acontecendo há anos.

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– Mas acho que agora está acontecendo um desmonte mais generalizado: está todo mundo passando por dificuldades, seja em qual for o setor, qual for o tamanho da produtora – ele prossegue. – Os editais diminuíram, os apoios privados diminuíram. E agora, por causa da questão financeira mundial, nós provavelmente vamos demorar alguns anos para reverter isso. Por um lado, eu fico sim meio apreensivo pensando em quem vive de cultura. Mas, por outro, eu também vejo muita gente brigando, produzindo mesmo assim. Quando a gente produz na dificuldade, acaba produzindo de uma forma mais intensa, mais visceral. E o cinema precisa disso, dessa intensidade, desse soco no estômago.