Um julgamento ocorrido em outubro na Inglaterra expôs um drama familiar que ainda divide qualquer sociedade: o assassinato, em maio, de duas crianças (um bebê de 10 semanas e uma menina de um ano e dois meses) pela mãe, que sofria de psicose pós-parto.
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A mulher, a designer de joias Felicia Boots, foi absolvida pelo juiz, que julgou sua prisão “totalmente inapropriada”, e internada em seguida, gerando protestos de um lado e apoio da comunidade médica de outro.
A história, várias vezes acompanhada também no Brasil, envolve um tema que ainda é tabu: quando a mãe, contrariando a imagem idealizada da maternidade, rejeita sua própria criança por conta de problemas psiquiátricos desencadeados logo após o parto.
Com receio de admitir a doença, e sem saber como tratá-la, a família vê um caso que poderia ser evitado se transformar numa tragédia. A primeira desinformação ocorre na tipificação da doença – há diferenças entre a tristeza, a depressão e a psicose pós-parto, nas quais a mudança hormonal que ocorre após a expulsão da placenta pelo útero tem um papel relevante.
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A primeira atinge até 80% das mulheres e se explica pelos desafios e estresses da nova fase, desaparecendo em até 15 dias. São os dois outros casos que preocupam e precisam ter acompanhamento psiquiátrico, com prescrição de remédios.
– A depressão pós-parto atinge cerca de 15% das mulheres e gera um sentimento de rejeição da criança junto com episódios típicos de depressão, como tristeza, ansiedade, choros e pensamentos negativos – explica o ginecologista e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Sheldon Botogoski.
O quadro é comum em pacientes que já têm histórico da doença e, ao contrário do que se pensa, na maioria dos casos somente as mudanças hormonais não são suficientes para disparar o gatilho do problema. A psicose, que atinge 0,2% das mães, é ainda mais grave.
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– É quando a mulher tem alucinações, ouve vozes, cria diálogos que não aconteceram, vê um ladrão imaginário entrar na casa dela. É bem raro e necessita de internação e medicação – explica o ginecologista e obstetra da Maternidade Santa Brígida Gleden Teixeira Prates.
É nessa situação que podem ocorrer os infanticídios, crime hoje punido com internação, já que a Medicina e o Código Penal consideram que a mãe não tinha ciência nem intenção de cometer o ato.
Infanticídio na lei brasileira
Casos como o da inglesa que matou os dois filhos já se repetiram no Brasil, e, caso se prove que a mãe cometeu o crime por estar sob a influência do “estado puerperal” e com suas faculdades mentais comprometidas, ela se torna inimputável.
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Nesse caso, sua pena é uma medida terapêutica, chamada também de medida de segurança, quando, ao invés de ir para a prisão, ela é internada em um Complexo Médico Penal.
O Código Penal de 1940 prevê, no seu artigo 123, o crime de infanticídio, lá descrito como “matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após”. O estado puerperal é algo pelo qual passam todas as mulheres – é o estado após o parto, quando o corpo ainda não voltou às suas condições normais.
Se as alterações durante este período são tamanhas que a façam matar o filho recém-nascido, há duas situações que serão examinadas pelo perito, de acordo com a legislação.
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A advogada criminalista e professora de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Priscilla Placha Sá explica que, se a mulher mata o filho neonato influenciada pelo estado puerperal, ela será julgada por infanticídio, mas que nem sempre a mulher será absolvida por seus atos:
– Nem todo caso de infanticídio é um caso de inimputabilidade, só se houver comprometimento de seu discernimento – esclarece.
Se, sob o estado puerperal, ela matar o filho mas ainda mantiver seu discernimento, pode ser condenada a uma pena de prisão que varia de dois a seis anos. Se esse discernimento estiver comprometido, ela se torna inimputável e é internada por um período mínimo de um a três anos.
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Para os casos em que ela também mata o filho mais velho ou o marido, por exemplo, o crime é de homicídio simples, mas a imputabilidade continuará a depender do comprometimento de suas faculdades mentais.
A professora explica que há dificuldades para atestar se a mulher estava ou não comprometida por este estado, e quanto tempo ele dura. A jurisprudência tem considerado até 15 dias após o parto, mas a medicina fala em 40 ou até 60 dias após. Outro problema, de ordem legal, diz respeito ao tempo em que a mulher fica internada.
– A Lei Antimanicomial, de 2001, preconiza que essas pessoas não deveriam ser internadas, mas tratadas ambulatorialmente e liberadas para ir para casa, mas não é isso o que acontece, via de regra. E o problema da medida de segurança é que ela não tem prazo máximo, apenas mínimo (de um a três anos). Há casos de pessoas que ficam internadas 30 anos – critica Priscilla.
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Falar do problema com o médico é fundamental
Após o episódio de infanticídio na Inglaterra, autoridades médicas e mídia alertaram para a necessidade de divulgação de maior esclarecimento sobre o assunto, para que mulheres que possuem histórico de depressão e transtornos de humor passem tal informação ao obstetra e a equipes de saúde quando engravidam.
O pré-natal é importante e deve ser incentivado pela família quando a própria mulher é negligente neste aspecto, pois até mesmo pequenas atitudes dela podem ajudar o médico a perceber se ela está depressiva ou tem tendência a desenvolvê-la.
– A mãe nos dá dicas, como o asseio, a aparência, se ela curte e mostra a gravidez para os outros, se ela chora do nada – enumera o obstetra Sheldon Botogoski.
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Os familiares e amigos também devem ser orientados a encarar o tema sem discriminação ou pânico.
– Percebo que já é um grande alívio quando as mulheres veem que seu parceiro procura entender o que está se passando com ela. A percepção de apoio por parte dele pode ser, inclusive, um fator de proteção para este transtorno – acrescenta o diretor do Programa de Saúde Mental da Mulher da Universidade Federal de Pernambuco e membro da Associação Brasileira de Psiquiatria Amaury Cantilino.
O psiquiatra afirma que mulheres com depressão precisam contar com a ajuda do companheiro e de parentes para cuidar do bebê, uma vez que ter um sono agradável e sem interrupções pode ser inclusive terapêutico.
Cantilino também lembra que é importante acompanhar esses bebês para que não venham a desenvolver transtornos cognitivos e afetivos decorrentes do menor contato com a mãe e até de episódios traumáticos ocorridos nesse período.
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Tratamento
Falta consenso sobre efeito dos remédios durante a amamentação Não há consenso entre os médicos sobre os riscos de se tomar antidepressivos ou antipsicóticos durante a amamentação, mas todos são unânimes em afirmar que a mulher que sofre de depressão ou psicose pós-parto não pode abrir mão da medicação quando essa é recomendada pelo médico, como fez a mãe inglesa.
Buscas feitas no computador de Felicia Boots mostram que ela fez dezenas de pesquisas sobre o assunto semanas antes de matar os dois filhos. O psiquiatra da clínica Úniica (Unidade Intermediária de Crise e Apoio à Vida) e professor da UFPR Élio Mauer afirma que as taxas dos remédios encontrados no leite materno e até mesmo na placenta são insuficientes para causar dano ao bebê ou prejudicar a relação entre mãe e filho.
No caso de a mulher precisar utilizar o remédio durante a gravidez, é importante que o faça após o terceiro mês de gestação, para evitar más-formações. Já o psiquiatra e professor aposentado da UFPR José Crippa diz que o bebê pode ficar mais irritado, ansioso e chorão por causa dos medicamentos, e que o ideal é suspender a amamentação, pelo bem da mãe e do próprio filho, que pode vir a ser agredido.
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– É uma briga entre o pediatra e o psiquiatra, porque esse medicamento pode causar alterações no humor da criança. Por isso, é preferível que o filho tenha uma amamentação artificial – diz.
Estado Puerperal
É o estado após o parto, por qual passam todas as mulheres, quando o corpo ainda não voltou às suas condições normais. A jurisprudência brasileira considera, para fins de análise do crime de infanticídio, esse período até 15 dias após o parto. Para a Medicina, porém, o estado puerperal pode se prolongar de 40 a até 60 dias após o nascimento.
Níveis do Transtorno
Tristeza Baby Blues
Pode ocorrer em até 8% de todas as mães de recém-nascidos, do terceiro ao 10º dia após o parto. Nesse quadro passageiro é possível identificar: irritação, desânimo, falta de vontade de pegar o bebê, desinteresse em receber visitas e tristeza. Esse tipo de depressão está ligado a alterações hormonais e tende a ser superado com o apoio do companheiro, da família e da equipe de saúde (apoio psicossocial)
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Depressão pós-parto
Ocorre a partir do sétimo dia e pode durar meses. Além de sentir tristeza, a mãe se descuida do bebê, irrita-se facilmente com ele, tem insônia, não se alimenta ou não se cuida direito, não tem vontade de dar o peito ou faz isso a toda hora (numa forma inconsciente de compensar o fato de não estar fazendo tudo o que poderia pelo filho). É um quadro que exige acompanhamento psicológico e, caso necessário, o uso de medicação
Psicose Puerperal
Afeta uma em cada mil mulheres em todo o mundo. É um quadro mais grave do que a depressão pós-parto, pois nele a mulher pode ter alucinações e delírios que colocam em risco a vida do recém-nascido. No surto de psicose puerperal, a mãe quer se livrar do bebê e até matá-lo. O tratamento desse tipo de distúrbio é feito com medicação e acompanhamento psicológico