Minutos após a confirmação pelas forças armadas egípcias de que o presidente Mohamed Mursi fora deposto, às 19h de ontem (14h no Brasil), o líder oposicionista Mohamed ElBaradei definiu a intervenção militar como o “relançamento” da revolução que, em 2011, derrubara o ditador Hosni Mubarak. A expressão de ElBaradei, que poderia parecer mera maquiagem para disfarçar um golpe militar contra a democracia personificada no presidente eleito pelo povo (o primeiro na história do país), foi, mais tarde, corroborada por analistas: os egípcios tentam aprofundar a revolução de 2011, um dos capítulos mais importantes da chamada Primavera Árabe.
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Doutor em política internacional pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Oriente Médio, Christian Lohbauer define o episódio como a busca por mais democracia:
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– Houve um avanço. Apesar de ser um rompimento constitucional e a deposição de um presidente eleito democraticamente, o Egito passou por quase 60 anos de autoritarismo. O que ocorreu em 2011 foi a derrubada do regime, mas sem alternativas para colocar no lugar. Mursi é um dos líderes da Irmandade Muçulmana, uma organização criada em 1928. E ele assumiu uma posição autoritária, também, o que é comum. A intervenção está sendo aplaudida nas ruas, e foi convocada mais uma constituinte e mais uma eleição. É bom para o Egito. O que os egípcios querem é democracia.
Os simpatizantes de Mursi, porém, apegam-se à ideia de que sua permanência seria constitucional e, portanto, representaria os ideais democráticos incipientes no país.
– Concordamos com um caminho, o das eleições. Elegemos a corrente islâmica porque é a natureza do povo egípcio – disse Ahmad Shawqy, 32 anos.
Gabriel Haddad, 78 anos, um egípcio que vive em Porto Alegre e mantém laços com o país onde nasceu e viveu durante quase 30 anos, dá razão a Lohbauer.
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– Mursi queria a lei islâmica, e isso ninguém quer no Egito. Os egípcios querem democracia e liberdade. Não aquelas regras da religião – afirma Haddad.
David Nashwat, 27 anos, procura afastar a ideia de que a atual revolta é um golpe militar:
– É uma correção histórica. A revolução foi roubada pelos islâmicos, e nós queremos garantir que vamos ter um país livre e democrático.
A união que surgiu das multidões insatisfeitas
A associação entre o exército e a oposição política, respaldada por milhões de pessoas que foram às ruas do Egito, resultou na queda de Mursi e levará ao poder o líder da Suprema Corte Constitucional, Manar al-Beheiry, um jurista, que toma posse hoje. É o aparente desfecho para os dias de confronto em que pelo menos 47 pessoas morreram durante os enfrentamentos – só ontem, foram quatro.
Eram 21h no Cairo quando Abdul Fatah al-Sisi, chefe do exército, anunciou a deposição e apresentou o cronograma a ser adotado. Ele falava e o público festejava, com gritos de ordem e arremessos de fogos de artifício. Al-Sisi também anunciou a suspensão da Constituição. A Carta atual havia sido aprovada oito meses atrás, após referendo. Sua redação foi elaborada por uma assembleia majoritariamente composta por conservadores radicais alinhados à Irmandade Muçulmana.
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Capitaneados pelo movimento Tamarrod (rebelião, em árabe), os opositores, entre os quais esquerdistas, políticos liberais e seculares, ganhavam dia a dia mais respaldo.
Além da imposição do islamismo e do que definiam como abuso de poder por parte do governo, havia descontentamento em relação a questões econômicas, como a carestia, em especial nos preços dos combustíveis e dos alimentos, os apagões elétricos e o desemprego em 13%. Houve ainda, no aspecto político, inconformidade com a recente nomeação de Adel al Jayat, originário de um grupo extremista, para ser governador da província de Luxor.
Na última segunda-feira, o exército egípcio havia estabelecido um ultimato de 48 horas para que Mursi apaziguasse os protestos populares contra seu governo. No domingo, o aniversário de um ano de sua chegada ao poder motivara manifestações em massa no país. O prazo dos militares se encerrou às 17h (12h em Brasília), e as horas seguintes foram de ansiedade e incerteza. Membros da Irmandade Muçulmana se reuniam em bairros protegidos por militantes enquanto opositores comemoravam, mesmo antes de a notícia ser confirmada, a deposição de Mursi.
O comunicado que oficializou o desfecho foi estabelecido após reunião entre a oposição, representada por ElBaradei, líderes islâmicos e membros da comunidade cristã do Egito.
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Mursi, porém, até ontem à noite, parecia não ter se conformado com a situação. Em vídeo divulgado horas depois de sua deposição, disse que se considera “presidente eleito” do país.
– Peço ao povo para defender a legitimidade (do governo deposto).
Durante a madrugada, Mursi foi detido e levado, com integrantes do seu gabinete, para uma instalação militar. Pouco depois, foi separado do grupo e levado ao prédio do ministério da Defesa, segundo Gehad al-Haddad, alto dirigente da Irmandade Muçulmana.
O presidente americano, Barack Obama, dizendo-se “profundamente preocupado”, determinou que o embaixador e os funcionários deixem a embaixada dos Estados Unidos no Egito. Pediu, também, o retorno rápido a um governo civil eleito.