A historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz diz que o caminho para superar o atual estado de diferenças no Brasil, reforçadas pela votação apertada nas eleições presidenciais de 2022 e pelos bloqueios ilegais subsequentes ao pleito, é justamente reconhecer o valor delas para a democracia.
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Para isso, segundo ela relata em entrevista concedida por telefone ao Diário Catarinense, é necessário colocar em discussão termos como “polarização”, que, em sua avaliação, parecem endurecer as diferenças comuns à democracia e tornar inviável qualquer diálogo.
A professora das universidades de São Paulo (USP) e Princeton, nos Estados Unidos, afirma ainda que momentos de divisão escancarada foram habituais ao longo da história do Brasil. Diz que também surgiram, nestas mesmas ocasiões, pedidos de intervenção militar semelhantes aos dos bloqueios atuais como se fosse uma solução mágica, que se mostrou, no entanto, um retrocesso.
A pesquisadora também afirma separar retrógrados, adjetivo que atribui ao presidente Jair Bolsonaro (PL), de conservadores, que diz considerar fazerem muito bem para a democracia.
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Schwarcz faz outras duras críticas a Bolsonaro. Ela destaca, por exemplo, que os episódios recentes de apologia ao nazismo em Santa Catarina foram avalizados por acenos do presidente a essa ideologia, como na ocasião em que recebeu sorridente no Palácio do Planalto a deputada extremista alemã Beatrix von Storch, neta de Lutz Graf Schwer, que foi ministro das Finanças de Adolf Hitler.
Ela ainda lembra que, ao longo do governo Bolsonaro, foram impulsionados casos de assédio eleitoral, também ocorridos em Santa Catarina, e relaciona eles ao já antigo fenômeno do coronelismo, que descreve em seu livro “Sobre o autoritarismo brasileiro” (Companhia das Letras, 2019).
Do mesmo livro, a professora também trata na entrevista de outro capítulo, sobre corrupção, em que faz menção crítica ao PT ao descrever o mensalão. Ela afirma que agora, para não repetir práticas ilegais em troca de apoio parlamentar, o governo Lula, a quem manifestou apoio na corrida eleitoral, terá de agregar adversários em uma frente ampla para garantir governabilidade.
Lilia Schwarcz é também autora de “O espetáculo das raças”, “As barbas do imperador”, “Brasil: uma biografia” e “Lima Barreto: Triste visionário”, entre outras obras. Além disso, já venceu sete vezes o prêmio Jabuti, maior honraria literária do país.
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Confira a íntegra da entrevista
Diário Catarinense – Essas eleições foram marcadas por uma polarização muito acirrada, com casos de violência, de ameaças de desrespeito às urnas e até de golpe de Estado. Tendo em vista a história do Brasil, a senhora acha que houve algo de novo nessas eleições?
Lilia Moritz Schwarcz – Vamos dizer que a violência é uma novidade apenas para uma certa parte da sociedade brasileira, a mais branca, mais abonada economicamente, a sociedade que costuma conviver com um Brasil que parece mais calmo. Mas nós sabemos que, para outra parte grande da sociedade brasileira, sobretudo para a mais negra e pobre das nossas periferias, a paz e a ausência de violência nunca foram uma possibilidade.
Por outro lado, eu acho que essas eleições trouxeram um nível de acirramento, de divisão existente no Brasil, com a qual nós vamos ter que trabalhar, que nós vamos ter que enfrentar. É uma divisão real, que é bom que aflore. Bom em qual sentido? Não para que dê guerra ou golpe militar. Mas é bom que ela aflore para que nós possamos lidar com ela. No silêncio, na invisibilidade, nós nunca lidamos com os problemas que são nossos.
Não é a primeira vez que a sociedade brasileira fica dividida dessa maneira. Eu lembraria, por exemplo, do contexto que resultou no suicídio de Getúlio Vargas. A sociedade estava muito dividida. E foi a sociedade civil que ganhou as ruas e que impediu por 10 anos a vinda da ditadura militar. Também no contexto de Juscelino Kubitschek, o Brasil estava profundamente dividido. É muito impressionante também como a saída militar aparece para um setor da sociedade brasileira como uma solução mágica, o que não é. Os militares nunca foram, na história do Brasil, fiéis da democracia, pelo contrário. Nos contextos em que os militares intervieram na política — e esse é o termo correto, porque o lugar deles não é na direção da política, é na proteção da sociedade —, o Brasil viveu ditaduras. Se pensarmos em 1889, quando os militares entraram no governo para uma perspectiva de transição e acabaram ficando durante duas longas gestões, a de Deodoro [da Fonseca] e a de Floriano [Peixoto], o Brasil viveu estado de sítio. Se formos pensar em 1964, a perspectiva é muito semelhante: os militares assumiriam o poder apenas para realizar uma transição democrática, mas vimos que a ditadura militar durou de lá até 1985.
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Então acho que não é a primeira vez que os brasileiros se perderam e se encontraram. Não é a primeira vez que a sociedade brasileira mostrou as suas divisões e contrariedades.
Agora eu também queria destacar que nós vivemos em uma democracia. E o regime democrático é caracterizado por algumas máximas. A primeira delas é a ideia da incompletude. Ou seja, o regime democrático é incompleto por definição. Mas é uma incompletude importante, esse é o maior problema e o maior desafio. É o maior problema porque a incompletude gera frustração. É um grande desafio porque a incompletude mostra que direitos precisam sempre ser conquistados.
A segunda máxima da democracia é a itinerância, a mudança no poder. Então, a mudança de perspectiva, de líderes que seguem diretrizes distintas, é muito positiva. E qual o terceiro elemento da democracia? É a ideia de que a democracia vive melhor na sua diferença. Ou seja, o problema da democracia não é com o pensamento conservador, é com o pensamento retrógrado. Um retrógrado quer fazer voltar atrás, como diz o nome em latim, em conquistas já arraigadas na sociedade. Diferente de um conservador, que respeita a Constituição e quer conservar alguns elementos, mas não se fecha ao diálogo.
Então acho que nós devemos retomar essas diferenças, que você chamou de polarização, e tomá-las como constitutivas da democracia. Tem que haver espaço para a demonstração dessas diferenças de forma legal, e não golpista, aceitando os resultados e as eleições democráticas para que o Brasil melhore.
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DC – O presidente eleito Lula disse, em seu discurso da vitória, que vai governar para todo o país, que não existem dois Brasis, mas os bloqueios e atos antidemocráticos mostraram que existe uma ruptura. Como é possível restabelecer o diálogo, recuperar o lado bom dessas diferenças?
LMS – Eu penso que a primeira tentativa é nós desinstrumentalizarmos esses termos. O problema de termos como polarização ou das falsas equivalências que foram feitas é que eles acentuam a impossibilidade da diferença. Ou seja, eles tentam enrijecer a divisão, enraizar ela. Essas são divisões históricas, políticas e sociais, e, como tal, podem ser questionadas e dialogadas.
Quais são as diferenças das quais nós estamos falando? Primeiro, há uma diferença regional muito grande. Você está falando de Santa Catarina, o Estado mais bolsonarista. Nós sabemos que houve uma divisão, que Luiz Inácio Lula da Silva foi sobretudo eleito pela região Nordeste. Essa divisão revela também que talvez Lula foi eleito por um voto espontâneo e insistente. Eu estou me referindo ao voto das pessoas pobres, das pessoas negras, das mulheres, das pessoas do Nordeste, de setores da população que conheceram os oito anos de governo Lula, que promoveu muita inclusão social, universidades, hospitais, escolas. Por isso que essas pessoas foram tão leais.
Por outro lado, nós sabemos que essa foi a primeira vez na história brasileira que um presidente em exercício não conseguiu se reeleger. Isso não é uma coincidência, mostra quais são os problemas da reeleição, sabemos que um presidente em exercício pode sangrar a máquina do Estado. O uso da máquina de Estado em outros contextos foi uma realidade, mas nunca nessa escala que nós vimos acontecer, com o presidente lançando auxílios antes dos resultados eleitorais. Então, por isso que eu chamei aqui o voto em Lula de espontâneo, porque não foi um voto mobilizado pela máquina do Estado, foi um voto teimoso, de convicção. Eu não estou querendo dizer que quem votou em Bolsonaro não tenha convicção. Estou chamando a atenção para a importância do voto que elegeu Lula.
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Agora, como endereçar essa questão para aqueles que votaram em Bolsonaro? Eu penso que a beleza da democracia e da itinerância está nesta questão de como será a oposição. Uma oposição democrática é muito construtiva. Mas não adianta as pessoas alegarem um artigo da lei para pedirem intervenção militar. Não houve nada de ilegal na eleição de Lula, e chamar por intervenção militar é uma atitude golpista, fora da lei. Não é uma atitude dentro da Constituição ou, como presidente gosta de falar, dentro das quatro linhas da Constituição. Aquele que perde uma eleição tem que aceitá-la e passar a realizar, se for o caso e se tiver motivos, uma oposição construtiva, cidadã, porque acho que todos queremos um Brasil melhor, sem fome, menos odioso, que vai ter que fazer seu luto pelas mais de 600 mil vítimas da Covid, que cuide do meio ambiente, que seja um Brasil desarmado, metaforicamente e concretamente.
Ficou claro pelos dois casos que aconteceram antes do segundo turno, de Roberto Jefferson e Carla Zambelli, que pessoas com armas na mão produzem um Brasil mais violento. O que nós vimos no caso dele foi um político totalmente destemperado com armas e granadas, que feriu dois policiais. No caso dela, vimos uma mulher branca nas ruas dos Jardins, um bairro de elite de São Paulo, perseguindo com uma arma na mão um homem negro. Então, se nós tomarmos essas imagens como metáforas, elas falam muito de um Brasil que não queremos coletivamente, porque queremos um Brasil funcional. Esse que estamos vivendo agora, que impede a livre circulação, que quer instigar os militares a saírem dos quartéis para impedirem uma eleição legítima, não pode nos orgulhar.
DC – A senhora mencionou o forte apelo do presidente Jair Bolsonaro em Santa Catarina. É comum o argumento de apoiadores de que ele defende a família, os valores da família. De onde vem esse discurso e quais valores são esses?
LMS – Bom, eu tenho que fazer um grande recuo para chegar na questão dos valores familiares. Essa construção desses líderes, que são retrógrados e também de extrema-direita, é feita internacionalmente. Nós podemos lembrar o caso da Hungria, dos Estados Unidos, da Turquia e Filipinas. São casos que mostram um crescimento desse modelo de extrema-direita. Poderíamos falar de outros governantes autoritários, mas vamos falar de extrema-direita, porque nós sabemos que Jair Bolsonaro se alimenta desse modelo construído por esses líderes, em geral homens que defendem uma tomada legal do Estado — tanto é que Jair Bolsonaro se elegeu democraticamente, e sua eleição foi plenamente aceita —, mas que depois passam sistematicamente a bombardear as instituições democráticas.
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A especificidade do caso brasileiro tem dois componentes fortes, o primeiro deles nós já falamos aqui, que é o militar, que não há nos Estados Unidos ou na Hungria. O governo Bolsonaro montou o maior ministério militar que nós já tivemos, maior até do que no período da ditadura, mesmo sendo ele, Jair Bolsonaro, uma pessoa que foi aposentada pelo Exército e que ficou presa. Esse é um dos pilares, o militarismo, que já é um sinal de uma sociedade autoritária.
O segundo pilar é esse que você aponta, construído a partir do apoio de uma igreja evangélica fundamentalista, e não de qualquer igreja evangélica, que supõe que os seus valores são os valores de todos. É um modelo que se apoia em uma família constituída de forma heteronormativa, basicamente branca, cristã e de classe média. A questão que fica é que um presidente eleito para um país do tamanho do Brasil deve governar só para si e para os seus fiéis ou para todos? O que eu quero chamar atenção não é para dizer que essa família não é importante. Claro que é importante, claro que tem que ser defendida. Mas, em uma democracia, nós não podemos defender os nossos valores como se fossem os de todos. Não podemos defender que só exista essa família, a que eu reconheço ser a minha.
A beleza da democracia é construída justamente a partir da alteridade com o outro, é ela se construir na diferença. Então, quando Bolsonaro defende… Bom, primeiro esse slogan [“Deus, pátria e família”] é muito problemático, porque era o mesmo do fascismo, que dizimou judeus, ciganos, as populações LGBTQIA+, os adversários políticos, que foram transformados em inimigos…
Então, eu penso sobre como nós vamos construir um Brasil que dê conta dessa noção de família, mas não dessa chamada, que me lembra o fascismo e o nazismo. A questão fundamental em Santa Catarina é sobre como a gente trabalha a ideia de que eu tenho os meus valores e aquele que não tem exatamente os meus valores não é meu inimigo — pode ser até um adversário, mas não é meu inimigo —, é sobre como eu trabalho para incluir essas várias formas de entender a família, a religião e a tradição.
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Nós, no Brasil, temos uma maioria negra. Se tomarmos os termos do IBGE, os negros correspondem a 56% da nossa população, mas essa é uma maioria minorizada na representação. Não vemos os negros na política, nos altos postos das empresas, nas universidades. E o que o mais acontece é que as religiões de matriz africana não são respeitadas. Ora, como é que eu vou exigir respeito à minha religião se eu não der espaço para uma outra religião, um outro valor? E são também valores brasileiros, porque as populações negras e africanas foram sequestradas no começo da colonização. Em 1550, já se falava em escravizados no Nordeste do Brasil. Então, são populações que construíram esse país. Não é legítimo que nós sequestremos uma parte da população para apenas impor os nossos próprios valores.
P – Em Santa Catarina, surgiram nos últimos dias diversos episódios de apologia ao nazismo. Eu cito dois em particular, da sua área de atuação, de uma carta que circulou na UFSC, que pregava ódio a minorias, e de um professor que disse ser fã de Hitler. Esse apelo ao nazismo voltou agora ou nunca deixou de existir? E por que também surge em espaços de educação?
LMS – Eu penso que um lado ruim da extrema-direita — e repito que eu não tenho problema algum com a direita nem com conservadores, ao contrário, penso que eles fazem muito bem à democracia — é justamente esse apego ao nazismo e ao fascismo. É preciso que fique bem claro que a apologia ao nazismo é um crime no Brasil, e não há como fazer apologia a um regime que matou em condições absolutamente desumanas mais de 6 milhões de pessoas, que construiu essa ideia de outro como inimigo, que, na verdade, não passava de bode expiatório.
Primo Levi, que é um autor pelo qual eu tenho um especial apreço, escreveu um livro chamado “É isto um homem?”, em que ele, que esteve em campos de concentração, chama a atenção de que não poderia viver em um mundo que admitiu a eliminação de pessoas daquela forma. Então não há elogio possível ao nazismo, ao fascismo, a Hitler ou a Mussolini. Eles são assassinos, genocidas. Esses são regimes que precisam ser lembrados apenas para que a gente reflita sobre como isso não pode ser realizado no Brasil.
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Acho também que o Brasil, que foi o último país a abolir a escravidão mercantil, e ainda com uma lei conservadora, que não previa reparações, sendo o país que mais recebeu mão de obra sequestrada e escravizada, que naturalizou uma desigualdade muito perversa, não pode de maneira alguma elevar regimes que pregam justamente o genocídio. O Brasil tem uma história complicada para contar a si mesmo, que é essa herança de ter aceitado mão de obra escravizada por quase quatro séculos. Pois bem, o que fazem esses regimes de extrema-direita? Eles têm avalizado sentimentos espúrios que ficavam escondidos. Eu acho que eles sempre existiram, vira e mexe se teve esse tipo de manifestação, ainda mais no sul do país. Mas várias pesquisas têm mostrado que essas demonstrações de nazismo e fascismo cresceram muito durante o governo de Jair Bolsonaro, que, por sua vez, recebeu parentes de dirigentes nazistas. Isso para um presidente, que tem essa posição simbólica tão forte, é um aceno tremendo a esse regime que é totalmente ilegítimo. É ilegal essa apologia.
Acontece que esses regimes retrógrados deram aval para as pessoas que tinham esse tipo de sentimento e não professavam passassem a achar que está na moda falar disso. Então, parece que, para algumas pessoas, está na moda dizer que é fascista, que é contra a ideologia de gênero, que é uma expressão construída para ser transformada em uma categoria de acusação. Essas pessoas passaram a achar que é bonito falar mal de negros, de mulheres, que é bonito fazer assédios verbais a mulheres, como presidente fez com jornalistas conhecidas, como a Vera Magalhães e a Patrícia Campos Mello. Essas pessoas acreditam que é bonito falar contra indígenas, dizer que são preguiçosos. Isso, de alguma maneira, foi avalizado pelo governo. E eu sempre disse isso: o meu problema não é com Bolsonaro, é com o que o bolsonarismo avaliza na população, como racismo, misoginia, que são valores que precisamos refutar. São coisas que sempre existiram, mas que escalonaram nos quatro anos de Presidência de Bolsonaro.
DC – Em Santa Catarina, houve também muitas denúncias de assédio eleitoral, de empregadores que tentaram coagir o voto de empregados. Historicamente, de onde vem esse tipo de prática? É uma releitura do voto de cabresto?
LMS – Eu escrevi esse livro chamado “Sobre o autoritarismo brasileiro”, em que, sem fazer um determinismo histórico, eu pretendia voltar ao passado para buscar alguns elementos do nosso presente, tanto que eu sempre uso essa máxima de que o nosso presente está cheio de passado. Um dos capítulos é justamente sobre o coronelismo, que é muito ligado com um outro sobre o patrimonialismo, que são as misturas das esferas públicas com as esferas privadas.
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Bom, o Brasil não só foi construído a partir da mão de obra escravizada, uma tecnologia moderna da violência, como foi também construído na base de grandes propriedades, mas com mando concentrado nas mãos de poucas pessoas. Nós sabemos que, durante os períodos colonial e imperial, o mandonismo local era uma moeda fortíssima, porque o grande proprietário poderia ser dono da vida e da morte, tinha ingerência na religião e na política, atuava em todas as esferas da sociedade. Nós nos acostumamos com isso, que eu chamei de linguagem da desigualdade, em que poucos mandam e muitos obedecem, que poucos têm uma concentração imensa de renda enquanto aqueles que não têm precisam atuar de forma subalterna, ou seja, aceitar os desmandos do coronel.
Nós sabemos que, na primeira República, o fenômeno do coronelismo teve uma incidência imediata no sistema de votos. O Victor Nunes Leal chega a contar no seu livro “Coronelismo, Enxada e Voto” que o eleitor ganhava duas cédulas, uma do número no qual ele devia votar e uma outra que seria do seu túmulo. Esse costume parece que nunca acabou e voltou de uma forma mais uma vez escalonada. Vimos não só em Santa Catarina casos de patrões que reuniam os seus empregados e condicionavam o emprego ao voto em determinado candidato. Uma reportagem do Caco Barcellos mostrou também que, em pequenas cidades, as autoridades condicionaram o recebimento do Auxílio Brasil ao voto. Foi neste sentido que chamei a atenção para o voto em Lula como mais espontâneo.
DC – A senhora declarou voto em Lula na campanha, mas faz menção crítica ao PT em um capítulo sobre corrupção do seu livro “Sobre o autoritarismo brasileiro”, citando o mensalão. A senhora também pondera ali ser comum a outros governos esquemas ilegais para garantir apoio parlamentar. Como Lula poderá governar agora, com minoria no Congresso, sem que se repitam essas práticas?
LMS – Eu agradeço por você ter citado, porque eu mostrei que sou uma intelectual independente a partir daquele capítulo sobre corrupção. Eu chamo a atenção para como a corrupção não faz parte do DNA dos brasileiros. Ela é uma construção. Portanto, nós podemos combater essas práticas, e eu menciono vários casos de corrupção na máquina do Estado e escrevo com bastante rigor, tanto que foi elogiado nesse sentido, sobre como foi a máquina do mensalão.
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Agora mesmo, o sociólogo Celso Rocha de Barros fez um livro sobre a história do PT em que ele chama a atenção para a ideia de que o mensalão mudava o curso [dos esquemas], mas ainda na moeda da corrupção. Ou seja, outros governos pagavam diretamente projetos por apoio de políticos, e o PT não queria abrir mão de seus projetos para poder endereçar a sua corrupção. Há quem diga que isso [mensalão] era para se manter no poder, e não para enriquecer, mas não importa. Para mim, corrupção é corrupção, e devemos combater essas práticas de todas as maneiras. A corrupção tira dinheiro do que nós não temos, das escolas, da saúde, das estradas e tudo mais.
Agora, quais são as diferenças para as quais também temos que chamar atenção? Lula foi condenado em um processo que hoje é considerado fraudulento, tanto que ele voltou a ser inocente das queixas a ele atribuídas. Isso é algo importante também para a gente produzir alguma paz no Brasil, porque senão nós vamos só ficar acusando uns aos outros. A questão é que nós temos que pensar também sobre a transparência. Ou seja, o governo do PT criou condições de transparência para que seus líderes fossem julgados e, assim, culpados ou inocentados. Nesse livro, eu comento sobre a importância da Lava-Jato no início, mas também que eu gostaria de uma Justiça rápida e eficaz para todos, e não só para Lula, que foi o que aconteceu. Criar condições para julgar seus próprios líderes é muito diferente de um presidente da República que estabelece 100 anos de sigilo, que impede que a Justiça seja feita ou averiguada.
Bom, mas esse presidente que ficou preso, e agora eu me refiro a Lula, saiu da prisão, passou por uma espécie de ostracismo político e agora ressurge. Se Lula não vai ter uma situação confortável no Legislativo, eu diria que ele tem em sua biografia um traço da maior importância, que é, sem dúvida, ser o líder mais popular do Brasil, tendo sido eleito três vezes. Ou seja, essa é uma novidade incontornável que fala de maneira muito clara da força dele. Ele vai ter que usar isso. Primeiro, nós vamos precisar de uma reforma eleitoral, que já vem sendo anunciada há muito tempo, porque senão nós não mudamos de forma estrutural o nosso modelo. Lula também precisará se utilizar dessa sua biografia.
Eu quero crer também que, passado este momento de transição, que é sempre difícil, quando Lula for presidente, ao montar os seus ministérios, ele vai formar uma grande frente, o que é fundamental neste momento. Lula chamou a atenção no seu discurso sobre só ter sido eleito por conta da frente que montou. Ele vai precisar agora compor um ministério representativo. Quanto mais ele voltar à ideia de uma frente democrática, mais construirá os andaimes da viabilidade do seu governo. Como diz o provérbio: quem viver verá. Mas ele já deu vários acenos nesse sentido, inclusive colocando Geraldo Alckmin como o líder da transição. No Brasil, a saída será a formação de uma frente, como foi em 1985 e em outros momentos da história. E, como diz o embaixador Alberto da Costa e Silva, frente se monta com os adversários, e não só com os amigos. Construir um Brasil mais plural é a única possibilidade para Lula ter um ambiente em que o país volte à rota da democracia, da riqueza e pelo fim da fome.
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DC – A senhora costuma dizer sempre que é pessimista no varejo e otimista no atacado. Eu queria saber se a senhora segue otimista hoje?
LMS – Eu sigo, sim. Acho que o Brasil tem plenas condições de sair desse momento em que ele se encontra, em que a fome voltou, em que deu mau exemplo no combate à corrupção, de um Brasil muito marcado pelo negacionismo, por um espírito anticiência, que está consumindo a Amazônia. Mas acho que esse é um país que tem condições. É um país sem acidentes naturais, muito rico em sua diversidade. Vamos enfrentar um momento difícil, porque o mundo está entrando em um período recessivo e há a guerra da Ucrânia, que tem muitos impactos. Temos que saber que Lula não vai enfrentar um mundo igual ao do primeiro mandato. Mas eu continuo muito otimista com esse país. É aquilo que eu já disse no começo da nossa conversa, que o Brasil já se perdeu e se encontrou muitas vezes, e nós vamos nos encontrar na esquina próxima do futuro.
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