Uma palavra contida no decreto do governo federal que permite a gestão do Parque Nacional de São Joaquim à iniciativa privada está no centro dos debates. Pelo texto da Resolução 131/2020, do Ministério da Economia, e assinado dia 7 de agosto pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), os serviços públicos de apoio à visitação, conservação, proteção e gestão — atualmente feita pelo Instituto Chico Mendes de Conservação a Biodiversidade (ICMBio) — ficam entregues para empresas particulares. A concessão é por 30 anos. A inclusão da área no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) e no Plano de Nacional de Desestatização preocupa especialistas.
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— Desestatização é uma palavra que nos causa estranhamento — diz João de Deus Medeiros, da Rede ONGs da Mata Atlântica (RMA), entidade que trabalha com cerca de 300 organizações de proteção ambiental.
Para o ambientalista, o decreto não surpreende em inovação. Há muito tempo o ICMBio opera com parcerias, como no Parque Nacional do Iguaçu, o das Cataratas. O problema, diz, é incluir a unidade em um programa que aponta para a transferência do parque para outro segmento que não seja o estado brasileiro.
— A retirada desta incumbência nem poderia ser feita por decreto, mas por emenda constitucional. Não se trata de ser contra a concessão, mas que seja feita de forma correta e estabelecendo garantias de aporte financeiro para aplicação em outras unidades com menor potencial. Não dá para ficar só com o filé e continuar com outras áreas mendigando recursos — defende.
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Aumenta preocupação com o Cânion do Funil
Dário Lins, da Eco Trilhas Serra Catarinense, empresa que oferece passeios nas regiões da Serra, conhece bem a região. O sócio gestor da Eco Trilha cita o Campo dos Padres como um dos lugares mais lindos do mundo. A empresa dele ajudou a equipe do Globo Repórter, na edição sobre a Serra Catarinense, em agosto de 2018, a mostrar ao país um lugar ainda pouco conhecido dos brasileiros:
— Sempre se fala na infraestrutura do parque, mas o que a região precisa é de melhoraria de estradas e de acessos. O resto a natureza já nos deu, e é isso que as cerca de 120 mil pessoas que no ano passado visitaram a Pedra Furada, por exemplo, procuram.
Para o empresário do ecoturismo, é importante que haja mobilização para que não se repita o que o ocorreu com parte do Cânion do Funil. Com mais de 1.400 metros de altitude, o Cânion do Funil faz parte do mais extenso conjunto de cânions da América do Sul com cerca de 200 km. Contra isso tramita representação no Ministério Público Federal e Estadual de Santa Catarina.
Organizações não-governamentais pedem a relocalização do empreendimento de modo a afastar as torres aerogeradoras dos limites do parque e das bordas do cânion, um dos cartões postais da Serra Catarinense. O licenciamento é estadual, mas o governo federal não considerou o parecer técnico local e fez diretamente de Brasília.
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“Quem vai assumir o pagamento das indenizações?”
Sob o comando do ministro Ricardo Salles — aquele que em reunião ministerial de 22 de abril propôs fazer uma “baciada” de mudanças nas regras ligadas à proteção ambiental e à área de agricultura, e evitar críticas e processos na Justiça — o Ministério do Meio Ambiente diz que o objetivo é que as empresas invistam, de forma regulada, durante um determinado tempo. Há quem duvide que investimento no local signifique aumentar o cuidado com a natureza e pessoas que vivem ali.
É o caso de Luiz Felipe Júnior, que integra a Comissão de Defesa dos Aparados da Serra. Luiz Felipe chama a atenção para a questão jurídica: a garantia de que a empresa que administrar o parque assegure o pagamento das indenizações aos proprietários com terras dentro do perímetro. São famílias proprietárias antes do parque ser criado, em 1961.
— Trata-se de uma das principais injustiças feitas com a população local. Como fazer a concessão para uma empresa privada de uma área que a parte fundiária ainda não foi regularizada? — pergunta.
Além disso, lembra, existe uma série de empresas que já desenvolvem atividades no local. A maioria surgida nas próprias comunidades.
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— A chegada de um grande investidor não pode significar a exclusão destas iniciativas, pois são guias, pequenos produtores, empresas que fazem passeios com os visitantes. Precisa ficar assegurado que a nova empresa se torne parceira nas modalidades já existentes.
— Não vejo como problema conceder a área para a iniciativa privada, desde que o processo seja bem fiscalizado.
Santur defende diálogo e transparência
Para Leandro “Mané” Ferrari, presidente da Agência de Desenvolvimento do Turismo (Santur), a concessão do Parque Nacional de São Joaquim à iniciativa privada para prestação dos serviços de apoio à visitação, além da conservação e proteção, pode trazer benefícios ao turismo regional. Mas alerta para a necessidade da pauta ser debatida com todas as partes envolvidas e construída de forma participativa, responsável e transparente, com base em chamamentos públicos e muita conversa com a comunidade.
– Vejo como algo que pode ser positivo e trazer mais investimentos ao Estado, mas sempre com responsabilidade social, alavancando o turismo da região de forma sustentável, com geração de empregos, melhorias em infraestrutura, capacitação e programas educacionais – defende.
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Ferrari considera importante entender que a integração homem-natureza tende a ser positiva tanto para a preservação desse patrimônio natural, como para melhorar as condições de vida de quem vive no local, a partir do seu uso turístico e educativo.
– Para que isso ocorra, as comunidades existentes no entorno ou próximas ao Parque precisam ser motivadas e instruídas a ver a unidade como uma geradora de riquezas, e não como empecilho ao desenvolvimento. Cada vez mais, as áreas preservadas estão ganhando valor e reconhecimento internacional por sua importância para a qualidade de vida – observa o presidente da Santur.
O Parque
O Parque Nacional de São Joaquim fica na região serrana, e o acesso pela parte alta é pelos municípios de Urubici e Bom Jardim da Serra. O parque também possui áreas nas cidades de Orleans, Grão Pará e Lauro Müller, na parte baixa da Serra do Mar.
Criado em julho de 1961 para a proteção dos remanescentes de matas de araucárias, encontradas dentro de seus 49,8 mil hectares, abriga pelo menos 149 espécies vegetais catalogadas e os dois únicos gêneros de coníferas existentes no país: o Pinheiro-bravo e a Araucária, sendo que esta, ameaçada de extinção, cresce na presença de outras espécies e por isso constitui um subsistema. O lugar tem uma fauna diversa, como Leão-baio e Lobo-guará, também com risco de desaparecerem da natureza, e outros mamíferos, como guaxinins, gambás, capivaras, antas, raposas, macacos tamanduás.
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A questão dos limites
O decreto da concessão veio enquanto era aguardada outra resposta, sobre o projeto de lei, PL 10082/2018, o qual trata da mudança dos limites do parque. Estima-se que em torno de 200 famílias que têm pomares de maçã, criação de gado e atividades ligadas ao turismo no Parque Nacional de São Joaquim sejam atingidas.
Em 2016, uma lei alterou os limites do parque e os produtores rurais acabaram ficando com terrenos dentro dos limites. O medo dos produtores é a perda das terras para iniciativa privada. Esse Projeto de Lei tramita desde 2018, e agora há pressão da comunidade, que deseja que o PL seja votado e que haja a consequente indenização, pois a área é produtiva. O PL também altera o nome do Parque Nacional de São Joaquim, para Parque Nacional da Serra Catarinense. Como isso, o vai ficar diante do decreto de concessão é uma grande incógnita.