Em um contrato de trabalho, três meses costumam ser o tempo médio de experiência na relação entre funcionário e empresa. Numa gestação, o período de 90 dias é considerado o mais delicado na formação do bebê. Três meses também foram necessários para que o aplicativo Uber, que começou a atuar em Blumenau em 9 de dezembro de 2016, registrasse as primeiras ocorrências de maior atrito entre motoristas parceiros e taxistas por aqui, flagradas ao longo de março – o serviço completou quatro meses na cidade no domingo.
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Mas o tempo ainda vai continuar sendo precioso na disputa de passageiros e na espera por alguma definição legal sobre o serviço na cidade. Isso porque no último dia 4 a Câmara Federal incluiu uma emenda na regulamentação nacional que retira o caráter privado do serviço e classifica-o como público. Com isso, os municípios, que seriam responsáveis por legislar sobre aplicativos de transporte individual, precisariam fazer licitações para permitir a operação. Com o novo entendimento, que é diferente do que as prefeituras vinham adotando, o Executivo local deve esperar a análise do Senado sobre a mudança sugerida pelos deputados antes de encaminhar qualquer regulamentação municipal.
Se nunca foi fraternal, a relação entre taxistas e motoristas do Uber ao menos pareceu amistosa na chegada do aplicativo à cidade. Em março, porém, a hostilidade aumentou. No último dia 11, um motorista do Uber relatou ter sido perseguido, ameaçado e agredido por três taxistas na Rua Amazonas, próximo ao 23º Batalhão de Infantaria (BI), no bairro Garcia. Ele teve o vidro traseiro do carro quebrado. A classe de taxistas, que já havia feito um abaixo-assinado cobrando punições do Seterb ao aplicativo, voltou a pressionar o órgão por providências.
As ocorrências se somam a outros relatos de fechadas no trânsito e troca de farpas entre as duas categorias nas ruas e nas redes sociais. Um clima de insegurança que não se restringe aos limites de Blumenau. No Aeroporto de Navegantes já houve ao menos três casos de discussões ásperas entre taxistas e condutores do Uber que disputam passageiros no local. No mesmo fim de semana do dia 11, quando o aplicativo começou a operar em Balneário Camboriú, vídeo mostrou discussão que terminou com um chute do taxista no automóvel de um parceiro do Uber.
A raiz das divergências está na disputa de mercado. Os taxistas alegam concorrência desleal, citam perda de passageiros de até 50% segundo a Cooperativa de Taxistas de Blumenau (Coopertáxi), sobretudo à noite e nos fins de semana, e classificam o Uber como transporte clandestino. Sentem-se prejudicados pelas taxas que precisam pagar, como termo de permissão, alvarás e vistorias (leia na página 6), nenhuma delas exigidas ao Uber. No outro lado, condutores do serviço do aplicativo defendem a liberdade de escolha e de iniciativa e rebatem com vantagens dadas aos taxistas, como isenção de IPVA e descontos para compra de carros, não concedidas aos parceiros do sistema via smartphone.
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Oportunidade para quem estava sem ocupação
Polêmicas e reservas de mercado à parte, o Uber tem despertado curiosidade e servido de fonte de renda para motoristas de diferentes perfis. Condutores que, por exemplo, antes eram contratados de permissionários de táxis até pessoas que enfrentavam o desemprego. Um motorista do Uber estima que 50% dos condutores estavam sem ocupação antes de migrarem ao serviço.
– Eu trabalhava com informática e já estava há quase um ano sem emprego, era bem difícil. Comecei há três meses com o carro do meu cunhado e por enquanto está sendo bom. Trabalho 10, 12 horas por dia, mas consigo um valor para pagar as contas e ajudar em casa – conta outro parceiro do Uber.
Há quem sustente que parte dos passageiros do aplicativo não era usuária de táxi e que, portanto, não há uma concorrência tão direta assim entre os dois. De qualquer forma, os preços baixos que são os grandes atrativos para passageiros do Uber, para os taxistas só são possíveis porque os concorrentes não precisam arcar com taxas e tributos municipais. Para adeptos do Uber, os táxis é que cobram demais pelo serviço. Contudo, em momentos mais concorridos, a tarifa dinâmica pode elevar a tarifa a patamares mais próximos dos cobrados pelos táxis. No caso do Uber, o aplicativo fica com 25% do que o condutor ganha na corrida. Os motoristas admitem: o valor das viagens bem que poderia ser maior.
Entre os táxis, quando quem está dirigindo são motoristas contratados, o valor costuma ser dividido. O auxiliar fica com a bandeirada, a corrida de retorno – caso consiga – e 20% do valor de quilômetros rodados. O restante é repassado ao permissionário. A aceitação de cartão de crédito, que era um forte argumento de quem descartava o táxi, hoje também já é realidade entre os carros brancos.
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– Com as máquinas que não cobram mensalidade, muitos aderiram. Estimo que dos 184 táxis, uns 150 já aceitem cartão – sustenta o presidente da Coopertáxi, Cláudio Koch.
Indefinição jurídica aumenta divisão
A animosidade entre taxistas e uberistas cresce na medida em que a situação do aplicativo na cidade fica indefinida. No embate legal, taxistas sustentam que no âmbito municipal o Uber não é regulamentado e apenas os táxis possuem autorização para o transporte público individual – foram concedidas permissões de 35 anos aos donos de táxis em março do ano passado, após nove anos de informalidade e em acordo a um Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público. Já os condutores do Uber se baseiam na Política Nacional de Mobilidade Urbana, de 2012, que diferencia os serviços de transporte individual entre público e privado, para restringir a exclusividade dos táxis à primeira e classificar o aplicativo nesta segunda categoria.
O advogado e coordenador da comissão de Transporte e Mobilidade Urbana da OAB Blumenau, Christian Marlon Panini Carvalho, afirma que a área ainda é um pouco sombria na legislação brasileira, mas concorda que a exigência de taxas e tributos apenas aos taxistas, enquanto o Uber sai isento de impostos municipais como o ISS, que deveria recolher pela natureza do serviço, cria uma desigualdade de disputa.
– A competição é algo saudável. Em cidades como Porto Alegre e São Paulo serviu para melhorar o serviço de táxi, mas inevitavelmente nesses locais houve um movimento de legislar de forma local para que o serviço traga tributos ao município e saia dessa condição de não regulamentado, que também não significa clandestino – avalia.
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Debate iminente na Câmara
O presidente do Seterb, Carlos Lange, avisa que foi concluído no início de março um estudo sobre o serviço em Blumenau. O levantamento aponta que há necessidade de uma lei federal que discipline a atuação do aplicativo – a mesma que esta semana recebeu uma emenda da Câmara dos Deputados que pode mudar o formato de funcionamento do serviço no país. Por enquanto, o município deve continuar sem repreender os motoristas do aplicativo – o presidente lembra que as leis que tentaram proibir o serviço em outros municípios acabaram cassadas.
Para Lange, porém, a natureza do serviço do Uber é sim contrato particular, aluguel de carro e chofer que sempre existiu, mas que hoje é facilitado pelo aplicativo. Ele minimiza a deslealdade da concorrência citada por taxistas e menciona as vantagens dos carros brancos, como locais para estacionar e isenção de impostos (leia na página 6). A oferta de mais permissões para táxis será estudada e pode ocorrer entre o fim de 2017 e início de 2018.
– Nosso entendimento, com base nas pesquisas, é que é temerário proibir (o Uber). A cidade pode defender o usuário enquanto consumidor, buscar garantias de seguro, por exemplo, com alguma regulamentação – sugere o presidente, que confirma que hoje a cidade não arrecada tributos com o Uber (se vier a arrecadar, deve ser apenas com taxas e licenças) e garante que a partir do momento em que houver uma legislação clara sobre o tema será possível, sim, fiscalizar o serviço do aplicativo.
Lange e o vice-prefeito Mario Hildebrandt, que chegou a comandar uma reunião com taxistas em março, informam que o município aguardará o Senado antes de encaminhar qualquer regulamentação no município, a menos que esta etapa demore muito a ocorrer. Blumenau já fez um levantamento de regulamentações feitas em outras cidades para encontrar um modelo capaz de formalizar o serviço. O presidente da Câmara de Vereadores de Blumenau, Marcos da Rosa, garante que o Legislativo também deve discutir o assunto nos próximos dias e prevê medidas como audiências públicas e um projeto de regulamentação.
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– Sabíamos que iria chegar o ponto em que está. Acredito que a população ganha com essa concorrência, mas da forma como está não é justo. A gente tem que pensar em medidas para garantir a segurança do usuário.
Confiança e descontentamento dividem motoristas
Quando conheceu o Uber, Anderson Seiler, 33 anos, logo viu na plataforma uma boa chance de um dinheiro extra. Mais do que isso, uma possível fonte para custear a faculdade da filha, de 18 anos, que pretende começar a cursar Arquitetura e Urbanismo a partir do segundo semestre. A experiência dos primeiros 45 dias de trabalho foi animadora. Durante o dia Anderson trabalha em uma gráfica, mas à noite dedica cerca de três horas para corridas pela cidade. Nos fins de semana, estende as jornadas e consegue renda extra que começa a ser importante para a família.
O preço da oportunidade foi algumas fechadas e ofensas pelo vidro do carro que segundo ele vinham de taxistas. Nada que o desanimasse. No último dia 11, porém, Anderson esteve na primeira ocorrência de maior gravidade envolvendo o Uber em Blumenau. Após levar uma passageira para o Caça e Tiro Jordão, no Progresso, diz ter sido perseguido e abordado por um taxista.
– Vi que ele estava fazendo foto e ligações. Perto do Terminal do Garcia, começou a dizer: “desliga o aplicativo, ?vaza? daqui, no Garcia não” – conta, lembrando que seguiu em direção ao Centro e terminou fechado por três taxistas, que teriam lhe agredido e quebrado o vidro do seu carro. O caso foi parar na Delegacia e Anderson promete levá-lo até o fim.
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Anderson retornou à ativa sem qualquer receio na semana seguinte. Quer apenas voltar a aproveitar os ganhos complementares. A confiança dele é a mesma demonstrada por colegas de aplicativo em grupos de redes sociais mantidos pelos motoristas. Segundo Anderson, a maioria está trabalhando sem temor de maiores problemas.
– O estudo da minha filha é mais importante que isso tudo. De minha parte, só gostaria que o poder público fizesse algo para evitar que esses fatos se repitam e que a prefeitura tomasse uma posição confirmando que podemos trabalhar para ver se a situação fica mais tranquila – almeja.
No outro lado desta relação, a preocupação é uma companheira ao volante. Com 34 anos de trabalho como taxista, Wilson Barth, hoje com 61, conta que o sentimento é de concorrência desleal com o aplicativo – que ele prefere nem mencionar o nome. Denuncia que no fim de semana do Festival da Cerveja, em março, carros de outras cidades vieram para aproveitar o movimento e fazer corridas pelo Uber – “isso põe em risco até mesmo os usuários”.
Atualmente ele trabalha pela manhã no ponto do bairro Fortaleza e também presta serviço na cooperativa, mas conta que entre os motoristas o clima é de descontentamento e cobrança por providências. Considera o Seterb omisso no papel de fiscalizar até agora e acredita que a regulamentação do serviço, com regras como vistorias e limitação de frota, por exemplo, possa equilibrar a disputa e deixar os taxistas e auxiliares mais tranquilos para trabalhar.
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– Cada táxi emprega o permissionário e dois auxiliares, então são mais de 500 famílias que estão sendo prejudicadas com essa concorrência desleal. O táxi sempre permitiu o sustento das famílias, a formação dos filhos. Se não houver fiscalização e providências do município, além dos prejuízos às famílias, os investimentos que fazemos, como a troca de carro a cada dois anos, e a própria qualidade do serviço podem ser prejudicados – avalia.
Situação nas demais cidades
– No Brasil, a maior polêmica em torno do Uber ocorreu na chegada em São Paulo, no ano passado. Em maio, a prefeitura publicou um decreto permitindo a atuação do aplicativo na cidade. Em julho, o município regulamentou o serviço e passou a cobrar uma taxa de R$ 0,10 por quilômetro rodado, pelo uso da estrutura viária. A empresa repassou a tarifa às corridas dos passageiros. Além de São Paulo, em Brasília e em Vitória (ES) o serviço também já funciona de forma legalizada na esfera municipal.
– Em Florianópolis, a Câmara de Vereadores rejeitou um projeto de lei de regulamentação do Uber, mas uma nova proposta está em discussão no Legislativo. Em Joinville, a prefeitura classificou o serviço como ilegal logo no primeiro dia de viagens na cidade, mas também uma decisão judicial permite as corridas dos motoristas sem punições na cidade. Em todo o país, o aplicativo atua em 46 municípios e tem mais de 50 mil motoristas parceiros.