Diz a História que Francisco, filho de família rica em Assis, desprovido de apegos materiais, amigo dos pássaros, apreciador das flores e aficionado pela poesia, foi surpreendido por um aviso de Deus: a Igreja estava ruindo. Preocupado, Francisco tratou de rezar, mas pensou que a capela local, a igrejinha de São Damião, viria abaixo naquele outono de 1205. Até que entendeu. A Igreja a que se referia Deus não era a construção física, mas o conceito, a fé, a religião. E Francisco tinha a missão de guardá-la, edificá-la sob os preceitos solidários da mensagem cristã.

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Oitocentos anos depois, o relato acima pode servir como analogia para a interpretação dos pronunciamentos que o argentino Jorge Bergoglio, o papa Francisco, tem feito. Primeiro foi uma missa com os cardeais, em 14 de março. Dois dias depois, numa audiência para os jornalistas. Terça-feira última, na homilia de “inauguração” do seu papado. A mensagem é a de que ele deve evitar a corrosão de uma Igreja em crise e, para tanto, promover a aproximação das suas origens – os fiéis.

Zero Hora compilou os três discursos e constatou: as palavras mais usadas pelo Papa são, na ordem, Igreja, Cristo, Deus, Jesus, Senhor, homem, guardar, José, Pedro, Maria, coração, criação e Francisco.

– Era óbvio que o papa Francisco iria falar de Igreja, mas uma chave da leitura para esses textos é a de que não se refere à Igreja como instituição, espaço físico. A Igreja, para ele, é a comunidade. Para os cardeais, ele fala em edificar e caminhar. Para os jornalistas, “queridos amigos” e não o usual “meus filhos”. Refere-se à Igreja como “pedra viva”. Tenho a esperança de que recupere as pequenas comunidades, as comunidades eclesiais de base – interpreta o padre Attilio Hartmann, doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP).

Padre Attilio dá ênfase ao seguinte trecho da missa celebrada por Francisco (nome que Bergoglio confirmou, na fala aos jornalistas, ser originário de São Francisco de Assis) com os cardeais:

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– Edificar. Edificar a Igreja. Fala-se de pedras: as pedras têm consistência; mas pedras vivas, pedras ungidas pelo Espírito Santo. Edificar a Igreja, a Esposa de Cristo, sobre aquela pedra angular que é o próprio Senhor. Aqui temos outro movimento da nossa vida: edificar.

Seria o momento em que o Papa deixa claro: a Igreja a que se refere não é a física, mas a espiritual. Nesse sentido, ele se apresenta como o “bispo de Roma”, algo simples, desprovido de referências divinas.

Mestre em linguística aplicada, Moacir Costa de Araújo Lima concorda.

– Quando o Papa fala em reconstruir a Igreja, não se refere aos aspectos materiais da instituição, ou à função do Vaticano como um Estado. Refere-se à busca de rumos que tragam paz, fraternidade e espiritualidade ao ser humano – diz ele.

Na última sexta-feira, Francisco, em seu discurso aos diplomatas no Vaticano, falou sobre a luta contra “a pobreza material e espiritual” e o diálogo com as outras religiões, particularmente com o Islã.

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Aos representantes dos 180 países creditados na Santa Sé, ele não pronunciou uma única vez a palavra guerra e não se aventurou no terreno dos conflitos, mas se definiu “como um construtor de pontes”.

A presença do santo dos pobres

O primeiro papa jesuíta, em discurso nitidamente influenciado pela visão franciscana que adotou para seu pontificado, fez referência em três oportunidades ao nome que escolheu, inspirado em São Francisco de Assis. Numa delas, disse:

– São vários os motivos pelos quais escolhi meu nome, pensando em Francisco de Assis, personalidade que é bem conhecida além dos confins da Itália e da Europa, e também entre quem professa a fé católica. Um dos primeiros é o amor que Francisco tinha pelos pobres. Quantos pobres ainda existem no mundo! E quanto sofrimento enfrentam estas pessoas!

Outros vocábulos chamam a atenção pela presença frequente ou pela ausência marcante. A palavra “poder” está em 14º lugar entre as mais citadas, e essa posição, naturalmente, é garantida na homilia em que Francisco falou para o mundo, na presença de chefes de Estado. A palavra “pobres”, prioridade franciscana, está em 36º lugar. “Guardar”, que dá a ideia de proteção à Igreja, além de ocupar o sexto lugar, aparece com destaque nas variações “guarda” e “guardião”. Claramente, é uma prioridade.

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Ao conversar apenas com os cardeais, o papa Francisco faz referência ao “diabo” para sinalizar o caminho a ser evitado, o caminho do mal.

– Quem não reza ao Senhor reza ao diabo. Quando não confessa Jesus Cristo, confessa o mundanismo do diabo, o mundanismo do demônio.

Quando era arcebispo de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio já havia recorrido diversas vezes ao diabo para sustentar uma ideia. Foi em 2010 que isso ocorreu com maior intensidade. Ele atribuiu à influência satânica a decisão de legalizar o casamento entre homossexuais. Definiu o episódio, na ocasião, como “uma manobra do diabo”. Foi nesse episódio, aliás, que ele aprofundou sua indisposição com a presidente Cristina Kirchner, uma defensora do matrimônio gay.

No dia seguinte ao da missa em que citou o diabo, Francisco teve um encontro mais informal com os cardeais e voltou a lembrar Satanás como o avesso da missão eclesiástica:

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– Não cedamos nunca ao pessimismo nem à amargura que o diabo nos oferece a cada dia.