“Disse Jesus Cristo: o ladrão vem para roubar, mata e destruir, J. Cristo vem para que tenham vida, e com abundância. João 10:9… Leia a Bíblia, João 3:16 e 14:6. Vá a Igreja” (sic). A despeito da crise que todos os meios de comunicação tradicionais enfrentam, os postes seguem com bom número de anunciantes enquanto dezenas de outdoors amargam o vazio. Deveriam servir apenas como suporte para os fios de energia, mas também passam mensagem de toda sorte. De cartaz de festa até a repetição de um belo rosto indígena desenhado. Mas o dizer bíblico me fisgou.

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Foi preparado com esmero. Fabricado em algum tipo de metal maleável, estava abraçado ao poste. Preso à prova de qualquer fiscal da prefeitura que tenha leis debaixo do braço, mas não um pé de cabra. Cada letra foi delicadamente entalhada. Incluiu ainda a nota de rodapé, com a recomendação de ir à igreja e ler versículos adicionais.

Videntes e cartomantes nos acostumaram com a praticidade dos cartazes impressos em plástico. Rápidos, simples, diretos. Pagamento só quando o serviço estiver completo. Apesar da noite de verão abafada, ter sacolas de supermercado pesadas nas duas mãos, o esmero do cristão à prova da Lei das Placas me fez parar.

Passava das 22h. O movimento era intenso, apesar de ser o período de férias coletivas entre Natal e Ano Novo. Mas os moradores da ponte ao lado daquele poste, no início da 7 de Setembro, não têm folga. Sobem e descem o barranco que dá acesso à parte debaixo da estrutura. Costuram o trânsito, pedem algum dinheiro, carregam garrafas cheias de líquido transparente, sentam-se na beira da calçada para papear com os vizinhos.

Os frequentadores mais novos da parte baixa da ponte, a saída do esgoto, é que nunca mais vi. Primeiro achei que estavam pescando em outro lugar. Depois disseram que os três pequenos pescadores de esgoto foram levados embora pela mãe. No escuro da madrugada fugiu do marido bêbado com os cinco filhos para o Paraná. Deixou tudo para trás. Sonhos, roupas e três varas de pesca.

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Não tenho medo de andar à noite. Acostumei, de fato, à intranquilidade que é ser uma mulher sozinha na rua quando o sol já dorme. É preciso ter vários olhos atentos. Por isso, percebi, enquanto lia o cartaz metálico, a movimentação do outro lado. O casal maltrapilho caminhava e discutia. Conversava, na verdade. Até que atravessaram na faixa de pedestres mais próxima. Achando que já tinha ficado parada demais para aquela hora, resolvi andar. Topei com os dois. Ele seguiu. Não era um casal.

Ela sorriu. Rosto queimado do sol, o bronze-cenoura tratava de marcar injustamente as rugas. Cabelo desgrenhado. Olhos dialéticos, chorosos e sorridentes. Uma boca escassa de dentes, apenas dois ficavam expostos. Carregava mochila de uma alça só. Blusa rosa desbotada de alça e calça jeans escorregando pelo quadril magro. Disse que procurava emprego, que vinha de longe, Lages, deixou as crianças lá, precisava trabalhar. Queria dinheiro para comer, não tinha onde dormir. Moça, pedi dinheiro para um homem. Ele disse que daria R$ 50 se eu fosse no mato com ele. Recusei, moça, passo fome, mas não faço isso não. Lembrei da placa feita com esmero por algum cristão, presa no poste a pouco metros de nós. Entreguei a pouca abundância que tinha na carteira. Agradeceu, evocou a abundância de Jesus e nunca mais a vi.