São peculiares. Seja empresa, condomínio, clube ou qualquer outro lugar em que nem todo mundo é bem-vindo sem antes confidenciar parte da vida, eles estão lá. Dividem apenas com as mães o direito fundamental de querer saber onde vamos e com quem queremos falar. Prostrados ao cotidiano do vai e vem alheio, estão enraizados em suas cabines. Ao que parece o anúncio de uma rotina tediosa, conseguem subverter o próprio destino. São, sem dúvida, os que mais conhecem quem e o que fica da portaria para dentro, mesmo que nem todos de fato prestem atenção nos porteiros. Nunca desperdicei a oportunidade de conversar com um deles.
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Encostada no balcão da portaria à espera da carona despontar na rua após o expediente que avançou pela noite, pude aprender sobre os mistérios da vida, ainda que não lembre muito sobre o que aquele porteiro do Santa falava. Com nome grego, herói mitológico, lembrava mais o Inspetor Bugiganga do que a história contada sobre o guerreiro milenar. Óculos quadrados enormes escorregavam pelo nariz, boné azul de aba miúda destoava daquela cabeça grande. Nunca descobri – talvez por falta de oportunidade para perguntar, ele gostava muito de falar – qual o motivo de chegar tão cedo ao trabalho. À tarde, não raro, era flagrado dormindo e ouvindo música no Tempra escuro quatro portas. Mas o batente começava só à noite. Fato é que tínhamos algumas semelhanças.
Um plantão numa redação de jornal num sábado à noite pode ser bem menos emocionante do que estudantes de jornalismo supõem. Ainda mais numa sala enorme em que o silêncio é trincado pelo estalar das telhas de zinco. Entre uma ligação e outra para delegacias dos confins deste vale enorme cortado pelo Itajaí, por pouco eu é que viro notícia. Repórter é encontrada morta em redação. Daria audiência, não acham? O problema seria a causa do coração paralisado. O porteiro, desconfiado (ou com medo?) da insistente luz acesa, foi checar a situação e quase matou a repórter medrosa de susto. E o porteiro também. Ele se assustou com o meu susto. Triste e público seria este nosso fim.
Ultimamente outro porteiro tem atraído minha curiosidade. Minto. Não se trata de curiosidade. É possível que seja inveja, daquelas que não se admitem em público. Não sei quando chega ou sai. Teria vida fora dali? Ou é desligado quando as luzes da biblioteca se apagam? Sempre que chego ou vou, independente do horário, tenho impressão de que está sempre por ali. Ser hostess de uma biblioteca tem suas vantagens. Sentado alinhado às catracas, está sempre lendo sem o risco de ser repreendido pelo chefe. Não tem obrigação contratual de inquirir quem entra. As visitas, em geral, são aos milhares de livros enfileirados. Ou à rede de wi-fi. Mais recentemente o visitante também estar interessados nos convidativos pufes – disponíveis apenas a quem não se importa com a soneca pública.
O trabalho dispensa porte de arma, que é substituída pela pistola de leitura do código de barras fixado em cada livro. À função é fundamental experiência na visão rápida para checar todas as cestinhas de pertences de quem sai da biblioteca. Aí sim, caso haja desconfiança de apropriação indevida – consciente ou não – é que o sujeito não escapa da abordagem do porteiro-leitor que não fica exatamente na porta. Há peculiar vida nas portarias.
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