Quis escrever alguma lista de desejos para o ano que dobra a esquina. Mudei de ideia. Já reparou como estamos sempre querendo? É mais fácil pedir do que agradecer. Não falo daquele obrigado da boca para fora, balbuciado roboticamente por obrigação. Viu a semelhança? Obriga-do/ção. Flanando pelas redes sociais neste ano que fecha a porta, outra palavra me intrigou. Não foi só o ódio quente transbordante e o Fla-Flu político que dominaram o espaço virtual. A gratidão virou hashtag. Aproveito a liberdade poética que esta época do ano oferece. Peço licença.
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Foram muitas as gratidões antecedidas pelas cerquilhas. Há quem tenha gratidão ao universo ou a Deus. Outros só têm #gratidão. Repetir à exaustão parece uma tentativa de convencer a si e ao próximo. Acredito, ainda assim, que às vezes, os sentimentos, ao transbordarem, acabam sendo expressados por hashtags. Essa onda me fez pensar que ver a vida sob a ótica da gratidão é ser mais feliz.
Acreditar que sempre falta, que nada é suficiente, é querer o inalcançável. A insatisfação é combustível para o consumo. Crer que a metade vazia do copo pode ser preenchida por algo comprável é afundar na lama da infelicidade. Perceber na parte cheia motivos para a gratidão – aquela que não se traduz usando uma # – é capaz de nos mudar. A ingratidão, mesmo que disfarçada, é amarga e solitária.
Falar sobre a insatisfação cotidiana proporcionada pelo desgosto de nunca estar grato ao que se tem – seja o amor ou a casa – parece fazer parte desta nossa modernidade líquida, conceito de Zygmunt Bauman. O sociólogo polonês, numa entrevista à revista IstoÉ, explica: “Líquidos mudam de forma muito rapidamente, sob a menor pressão. No atual estágio “líquido” da modernidade, os líquidos são deliberadamente impedidos de se solidificarem.
A temperatura elevada – ou seja, o impulso de transgredir, de substituir, de acelerar a circulação de mercadorias rentáveis – não dá ao fluxo uma oportunidade de abrandar, nem o tempo necessário para condensar e solidificar-se em formas estáveis, com uma maior expectativa de vida”. Impedir que a rapidez do desaguar do nosso tempo impeça o olhar mais demorado e, com isso, proporcionar-se gratidão, é quase transgredir.
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A gratidão tem de ter seu próprio lugar, mas não pode impedir alguma ambição e o desejo de avançar para um passo melhor. Tampouco transformar-nos em Pollyannas, vivendo sob o perigo da visão unilateral. Ao ano que passa e ao que começa, gratidão. Não a precedida por cerquilhas. Quero a que só um abraço e o olho no olho são capazes de expressar. Aquela que é preciso sentir, mais que dizer.